A canção romântica ‘Cobre’ e o fado ‘Você-você’ são as grandes músicas da safra inédita e autoral do disco, mas outras faixas se impõem pela exuberância dos arranjos de Thiago Amud e Jaques Morelenbaum. Capa do álbum ‘Meu coco’, de Caetano Veloso
Fernando Young
Resenha de álbum
Título: Meu coco
Artista: Caetano Veloso
Edição: Uns Produções / Sony Music
Cotação: * * * * *
♪ Primeiro álbum de músicas inéditas de Caetano Veloso em nove anos, Meu coco apresenta safra autoral bem mais coesa do que a de Abraçaço (2012), o disco anterior do artista no gênero.
São 12 canções da lavra solitária do compositor, sendo oito inteiramente inéditas, duas já previamente lançadas em discos das cantoras Maria Bethânia e Céu (Noite de cristal e Pardo, respectivamente), uma apresentada pelo próprio Caetano em live feita em dezembro de 2020 (Autoacalanto) e outra (Anjos tronchos) já previamente divulgada em setembro como single do álbum.
Algumas dessas oito composições totalmente inéditas talvez perdessem parte do encanto se despidas do molde exuberante com que são expostas em Meu coco, disco gravado no primeiro semestre deste ano de 2021, no estúdio montado na casa do cantor na cidade do Rio de Janeiro (RJ), com produção musical orquestrada pelo próprio Caetano com Lucas Nunes, músico da banda carioca Dônica.
É da riqueza de timbres, ideias e intenções que brota a grandiosidade de Meu coco, álbum em que, em essência, Caetano põe na balança as riquezas e as dissonâncias do Brasil de 2021, dando mais peso à fartura artística do país em letras repletas de citações a outros artistas – como já sinalizara o single Anjos tronchos ao abordar os malefícios do Vale do Silício.
Como o artista pondera no texto que escreveu para apresentar o disco lançado na noite de ontem, 21 de outubro, cada uma das 12 faixas de Meu coco tem vida própria e gravita em torno de um universo musical.
Ainda assim, a música-título Meu coco parece ter sido o norte que guiou o compositor na construção da rebuscada e plural arquitetura do álbum.
Caetano Veloso cita João Gilberto em verso da música ‘Meu coco’ e manda recado político no funk ‘Não vou deixar’
Fernando Young / Divulgação
Em essência, a composição Meu coco é samba assentado sobre o arsenal percussivo de Marcio Victor (timbal, talk drums, timbales, atabaque, derbak, shake, balde, tamborim, aro, alfaia, surdo virado e surdo), mas entortado pelo sinuoso e estonteante arranjo de sopros orquestrados por Thiago Amud.
“A palavra bunda é o português dos Brasis”, sentencia o compositor em verso da música-título de álbum que faz ode à mestiçagem do país ora dissonante. “Com Naras, Bethânias e Elis / Faremos mundo feliz”, vislumbra o artista, sem perder de vista a referência máxima no universo musical (“João Gilberto falou / E no meu coco ficou”) e a autorreferência, feita através de alusões às letras das músicas Irene (1969) e Um índio (1976).
Sopro de renovação no cancioneiro do artista, o samba Meu coco dá passagem, no roteiro do disco, à rota árabe seguida pelo artista em Ciclâmen do Líbano, música engrandecida pelo arranjo de cordas orquestradas por Jaques Morelenbaum com influência da obra do compositor e maestro austríaco Anton Webern (1883 – 1945), expoente da linguagem atonal. Ciclâmen do Líbano é a típica música saída do coco inventivo de Caetano e elevada no estúdio.
Funk criado a partir de base de rap sintetizada por Lucas Nunes (piano, programação, sintetizador e violão na faixa) e gravado com percussão tocada por Vinicius Cantuária, Não vou deixar é música que envolve o ouvinte com discurso – “Não vou deixar, não vou, não vou deixar você esculachar / Com a nossa história / É muito amor, é muita luta, é muito gozo, é muita dor / E muita glória” – que parece endereçado a um ex-amor raivoso, mas que é recado para autoridades que (des)governam o Brasil desde 2018.
Sob tal prisma, Meu coco é disco de resistência. O “vovô nervoso e teimoso” – assim autoperfilado na verborragia ansiosa do funk Não vou deixar – se enternece para ninar amorosamente o neto Benjamim com Autoacalanto (faixa em que aparecem os violões de Tom Veloso e do próprio Caetano, menos evidenciado nas gravações de Meu coco e Ciclâmen do Líbano) e endurece sem perder a ternura em Enzo Gabriel para abençoar nesta canção a chegada ao mundo de meninos guenzos que podem vir a se tornar gigantes negros no país desigual.
“Sei que a luz é sutil / Mas já verás o que é nasceres no Brasil”, pondera o pai da canção, pontuada pelo toque do acordeom de Mestrinho.
Na sequência, Gilgal se eleva aos céus sobre batida de candomblé criada e percutida por Moreno Veloso (sino, surdo, agogô, rum, rumpi e lé), ecoando belezas sublimes de Os Tincoãs na timbragem e no canto dividido por Caetano com Dora Morelenbaum, intérpretes de versos que puxam dinastia musical brasileira que “vem de Pixinguinha a Jorge Ben”, como enfatiza a letra.
Dentro dessa linhagem mestiça que costura o disco, Cobre se impõe como a grande canção da safra inédita. É canção romântica que, de acordo com Caetano, fala da cor da pele do ser amado no confronto com o reflexo do sol no mar do fim de tarde do Porto da Barra, praia da cidade de Salvador (BA). Arranjada com cordas orquestradas por Jaques Morelenbaum, Cobre é música de grande beleza melódica que deverá gerar releituras de outros intérpretes.
Caetano Veloso cita Anavitória, Baco Exu do Blues e Marília Mendonça em samba feito para Pretinho da Serrinha
Fernando Young / Divulgação
Na costura mestiça do álbum Meu coco, Cobre se afina pela baianidade nagô com Pardo, música lançada por Céu no álbum APKÁ! (2019) e repaginada por Caetano com a afro-brasilidade do arranjo de Letieres Leite. Já o fado Você-você – inspirado pela figura de Carminho e cantado por Caetano com a fadista, com direito à emulação do sotaque português – ombreia com Cobre pelo posto de grande canção inédita do disco.
Emoldurado pelo bandolim tocado por Hamilton de Holanda como se fosse guitarra portuguesa, o fado pinta na letra uma aquarela brasileira, nominando referências nacionais como Ary Barroso (1903 – 1964), Noel Rosa (1910 – 1937), Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), Chico Buarque e, em ponte transatlântica, a cantora portuguesa Amália Rodrigues (1920 – 1999).
Caetano expande e atualiza a aquarela na faixa seguinte, Sem samba não dá, faixa inspirada por Pretinho da Serrinha. O samba põe o cantor na roda carioca, novamente expondo dissonâncias do Brasil (“Tudo muito esquisito, tudo muito errado”) com sopro de esperança (“Mas a gente chega lá”), renovada, na visão do artista, pela pluralidade da trilha sonora do país.
“Tem muito atrito, treta, tem muamba / Mas tem sertanejo, trap, pagodão”, confronta Caetano, antes de citar nominalmente artistas da nova geração como Anavitória, Baco Exu do Blues, Djonga, Ferrugem, Gloria Groove, MC Cabelinho e “Mar(av)ília Mendonça”, entre outros nomes.
Por fim, ao fechar o álbum Meu coco com regravação de Noite de cristal (1988), bonita canção lançada por Maria Bethânia no álbum Maria (1988) e até então inexplicavelmente inédita na discografia do autor, Caetano Veloso vislumbra alegrias, “dias de outras cores”, confirmando que, no arco pardo do disco Meu coco, toda e qualquer dissonância nacional pode ser dissolvida com a luz da Arte maior que sustenta o Brasil.