Álbum editado no Brasil em CD evidencia afinidades entre as obras do letrista carioca e do compositor lusitano, voz da resistência em Portugal nos anos 1960 e 1970. ♪ Grande cantora do Brasil, Mônica Salmaso se encontra com o cantor lusitano José Pedro Gil no cruzamento de Estrada branca, álbum lançado em Portugal em 2019 e posto no mercado fonográfico brasileiro neste mês de outubro de 2021. O álbum sai no Brasil pela gravadora Biscoito Fino, em luxuosa edição em CD, com capa cuja arte remete à estética dos discos lançados pela gravadora Elenco nos anos 1960.
No cruzamento de Estrada branca, os cancioneiros do compositor carioca Vinicius de Moraes (19 de outubro de 1913 – 9 de julho de 1980) e do compositor português José Afonso (2 de agosto de 1929 – 23 de fevereiro de 1987) se entrelaçam por afinidades poéticas e pela moldura de câmara que embala o repertório cantado por Salmaso e José Pedro Gil.
Sob direção musical de Emanuel de Andrade (piano), Nelson Ayres (piano e acordeom) e Teco Cardoso (flauta e shruti), os solistas cantam Vinicius de Moraes e José Afonso com certa – apropriada – solenidade e com o toque lírico do quarteto de cordas formado por Ana Pereira (violino), Filipa Serrão (violino), Joana Cipriano (viola d’árco) e Nuno Abreu (violoncelo).
Lançado em Portugal em 2019 para celebrar os 90 anos de nascimento de José Afonso, Estrada branca é álbum ao vivo que registra o recital com que Salmaso e Pedro Gil percorreram cidades da Terrinha há quatro anos.
Prova incontestável da beleza perene do concerto roteirizado com dramaturgia de Carlos Tê (autor do mais alentado dos textos reproduzidos no encarte da edição em CD, cuja arte abre espaço até para cronologia que relaciona as vidas dos compositores), o disco Estrada branca se origina da captação de apresentações feitas entre 26 e 30 de maio de 2017 no Mosteiro de São Bento da Vitória – situado na cidade do Porto – e no Centro Cultural Olga Cadaval, na cidade de Sintra.
Capa do álbum ‘Estrada branca’, de Mônica Salmaso com José Pedro Gil
Divulgação
Embora haja solos vocais, como a magistral abordagem de Derradeira primavera (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1962) por Salmaso, mais um atestado da nobreza clássica do canto da intérprete paulistana, o roteiro de Estrada branca foi pavimentado com duetos em que os intérpretes incursionam pelas obras dos compositores, evidenciando as correlações entre os cancioneiros.
Se José Pedro Gil divide com Salmaso a interpretação de Olha, Maria (Antonio Carlos Jobim, Chico Buarque e Vinicius de Moraes, 1970), a cantora se afina com o colega lusitano na Canção de embalar (José Afonso, 1968) – exemplo da habilidade do compositor português para reprocessar tradições musicais lusitanas em obra que também ecoou cadências de países africanos como Angola e Moçambique – e faz o contracanto inebriante de Os índios da meia-praia (José Afonso, 1976).
Voz da resistência contra a opressão na luta portuguesa por liberdade, José Afonso legou ao mundo canções enraizadas na tradição de Coimbra, caso da Balada de outono (José Afonso, 1964), ouvida no álbum Estrada branca em solo de Salmaso com a precisão dos arranjos acústicos e líricos.
Choro entoado fluente e graciosamente por Salmaso, Odeon (Ernesto Nazareth, 1909, com letra póstuma de Vinicius de Moraes, 1968) quebra a atmosfera de densidade poética do disco na parte final do concerto, sendo seguido, no mesmo clima, pela interpretação de Pau-de-arara (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, 1964).
Seguidores de Salmaso notarão que há muitas interseções entre o repertórios do recital da cantora com Pedro Gil e o roteiro do show feito pela artista no Brasil com o Quinteto da Paraíba. Por isso mesmo, para ouvidos brasileiros e para esses seguidores fiéis de Salmaso, o teor de novidade do álbum Estrada branca reside sobretudo nas abordagens do cancioneiro de José Afonso.
Quando Salmaso se harmoniza com Pedro Gil no canto de Que amor não me engana (José Afonso, 1973) – canção libertária de versos resistentes como “E as vozes embarcam / Num silêncio aflito / Quanto mais se apartam / Mais se ouve o seu grito” – e de Adeus, ò Serra da Lapa (José Afonso, 1973), número que fecha o show e precede o bis dado com Valsinha (Chico Buarque e Vinicius de Moraes, 1970), fica claro que, mesmo separados por um continente, José Afonso e Vinicius de Moraes de certa forma se irmanaram com conexões iluminadas no cruzamento de Estrada branca.