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Voz macia de Dick Farney atravessa um século sem envelhecer

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Obra do cantor e pianista carioca, que teria feito 100 anos, embute modernidade perene. Dick Farney
Reprodução / Capa do LP ‘Canções para a noite de meu bem’, de 1960
♪ MEMÓRIA – O tempo não para e, no entanto, o canto macio de Dick Farney nunca envelhece, atravessando um século como símbolo perene de modernidade na música do Brasil.
É fato que a revolução foi feita essencialmente por João Gilberto (1931 – 2019) em agosto de 1958 ao apresentar a bossa nova na voz e no violão a partir da edição do single que marcou época com a gravação do samba Chega de saudade (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1958).
Contudo, anos antes, vários músicos e cantores já vinham apontando caminhos na contramão da trilha melodramática do bolero e do samba-canção vigentes nas décadas de 1940 e 1950 em reinado dividido com o baião.
Um dos visionários foi o carioca Farnésio Dutra e Silva (14 de novembro de 1921 – 4 de agosto de 1987), pianista de formação erudita, mas amante das liberdades do jazz, e cantor de voz aconchegante e sem vibratos.
Dick Farney, como o artista ficou imortalizado, teria feito 100 anos no domingo, 14 de novembro. Fosse o Brasil menos dissonante em 2021, a esquecida efeméride teria sido festejada com pompa. Até porque, em 1946, com apenas dois anos de carreira fonográfica iniciada em 1944, Farney fez a própria revolução ao lançar single com a gravação original do samba-canção Copacabana (João de Barro e Alberto Ribeiro, 1946).
Foi um registro feito sem impostação vocal e sem a sofrência associadas comumente a esse gênero musical. Sim, era possível ser feliz a dois ou mesmo sozinho na música brasileira, como Farney vinha tentando mostrar desde que entrara em cena profissionalmente em 1937, como pianista de programas de rádio e como músico contratado para tocar em discos alheios.
Pianista oficial da orquestra do Cassino da Urca de 1941 a 1944, Farney tinha bossa. Tanto que foi o padrinho artístico de Johnny Alf (1929 – 2010), pianista que também abriu decisivos caminhos para a revolução.
Como cantor, Farney também tinha um padrinho que, a rigor, nunca lhe dera a benção artística por não conhecê-lo, mas que o influenciara sem saber. Trata-se do cantor norte-americano Bing Crosby (1903 – 1977), de quem Farney era ardoroso discípulo, assim como adorava o jazz, a ponto de ter transitado na ponte Brasil-Estados Unidos da segunda metade do anos 1940 até o fim da década de 1950.
Sempre que pisava em solo nacional, diziam que Farney tinha voltado americanizado. Uma injustiça, pois, antes mesmo de partir pela primeira vez para os EUA, ele já sorvia com avidez da música norte-americana.
A partir dos anos 1960, radicado definitivamente no Brasil, Farney voltou para o aconchego dos bares e boates que abrigavam o jazz e o samba-jazz. Na década anterior, o artista já havia lançado álbuns como Dick Farney e seu quinteto (1955) e Dick Farney trio (1956), cujos títulos já indicavam a natureza jazzística do som do pianista.
O cantor e o pianista conviveram harmoniosamente em discografia coerente que inclui álbuns como Meia-noite em Copacabana com Dick Farney (1957), Atendendo a pedidos (1958), Canções para a noite de meu bem (1960), Jazz (1962), Dick Farney (1964), Penumbra romance (1972), Dick Farney (1973), Um piano ao cair da tarde (1974), Um piano ao cair da tarde nº 2 (1975) e Dick Farney (1978).
Alijado da indústria fonográfica a partir dos anos 1980, Dick Farney ainda gravaria discos com regularidade nessa década, mas por selos de menor porte, como Som da Gente e Inverno & Verão. São os casos dos álbuns Noite (1981), Feliz da gente (1983) e Momentos (1985), lançados quando o artista já tinha caído em injusto esquecimento.
Com a voz macia, diplomada na escola de Bing Crosby, Dick Farney interpretou vários standards da canção norte-americana, expondo a sofisticação de repertório que também era objeto de admiração do pianista seguidor do jazz.
Contudo, na memória afetiva do Brasil, são sambas-canção do porte de Alguém como tu (José Maria de Abreu e Jair Amorim, 1952), Nick bar (Garoto e José Vasconcellos, 1952) e, claro, Copacabana (João de Barro e Alberto Ribeiro, 1946) que estão eterna e primordialmente associados ao canto depurado – ainda e sempre moderno – do já centenário Dick Farney.

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