Fundamental, o último livro de Zuza Homem de Mello é fiel à estética do genial cantor que rejeitava adornos vocais. Capa do livro ‘Amoroso – Uma biografia de João Gilberto’, de Zuza Homem de Mello
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Resenha de livro
Título: Amoroso – Uma biografia de João Gilberto
Autor: Zuza Homem de Mello
Edição: Companhia das Letras
Cotação: * * * * *
♪ Fosse a voz de um cantor, a narrativa de Amoroso – Uma biografa de João Gilberto poderia ser caracterizada como um texto sem vibratos. Vibratos são efeitos ou enfeites aos quais alguns cantores recorrem quando dão voz a uma música.
João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (10 de junho de 1931 – 6 de julho de 2019) foi cantor refratário a qualquer enfeite na voz. Um ourives do canto que trabalhou incansavelmente para que a voz emitisse somente o essencial, em total interação com o violão, para que voz e e violão soassem indivisíveis como um único harmonioso instrumento.
Entusiasta da Arte maior de João Gilberto, Zuza Homem de Mello (20 de setembro de 1933 – 4 de outubro de 2020) apresenta biografia fiel à estética do amigo. A narrativa assumidamente afetuosa de Amoroso – livro posto no mercado pela editora Companhia das Letras neste mês de novembro de 2021 – também vai direto aos pontos essenciais da trajetória de João Gilberto, de quem Zuza foi amigo.
E, por essência em se tratando de João Gilberto, entende-se sobretudo música. Som. E silêncio. Em vez de adornar a narrativa com profusão de detalhes que poderiam tornar o texto cansativo, Zuza optou por manter a biografia em tom fluente, harmonioso, leve, sempre tendo como foco principal a obra do gênio e, antes, os caminhos percorridos por João para chegar ao som rotulado de bossa nova.
Essa rota começou em Juazeiro (BA), cidade natal do cantor, passou por Salvador (BA), chegou ao Rio de Janeiro (RJ), desembocou em Porto Alegre (RS) – para onde João migrou no verão de 1955, em movimento menos conhecido que Zuza contribui para elucidar no livro – e abarcou Diamantina (MG) antes de voltar para o Rio de Janeiro (RJ), cidade onde João fez efetivamente em 1958 a revolução que pôs o mundo da música aos pés do artista.
Por ter sido testemunha ocular de parte dessa história desde que conheceu João em Nova Jersey (EUA) em dezembro de 1967, assunto do primeiro capítulo do livro, Zuza descortina bastidores de shows sem devassar a intimidade do cantor. Assim como dilui mitos sobre o mito.
Enfim, João Gilberto é amorosamente perfilado por Zuza sem a aura do exotismo que habitualmente envolvia o cantor na mídia. Fica claro na biografia que toda e qualquer idiossincrasia – mania, no entender de alguns – era fruto da obsessão do artista pela perfeição.
A perfeição do som – no caso sobretudo dos shows, razão de tantas exigências (compreendidas mais pelos técnicos e pelo público do Japão do que pelas plateias e profissionais do Brasil, como Zuza ressalta) – e a perfeição de um mundo naturalmente dissonante, o que levava João a se refugiar dentro de si mesmo, em quartos de hotéis, de apartamentos, enfim, em qualquer lugar aonde ele se sentisse em paz.
Uma das teses mais interessantes apontadas no livro – em depoimento de Arnaldo Bortolon, road manager de João – é a de que os recorrentes atrasos do cantor nos shows e em viagens (os voos eram remarcados sucessivas vezes) eram motivados pela dificuldade de João deixar um ambiente (geralmente um quarto de hotel) no qual se sentia seguro, protegido dos vibratos do mundo.
Zuza Homem de Mello também prioriza a essência quando explica, do ponto de vista técnico, a invenção da tal batida diferente do violão de João Gilberto que personifica a bossa nova. O leitor jamais corre o risco de se entediar porque, em sintonia com o som de João, Zuza opta pela economia.
Às vezes, o autor até atrasa a narrativa, como quando se estende sobre os conjuntos vocais que influenciaram decisivamente o cantor (habituado a pescar pérolas do samba nos repertórios desses grupos), mas sempre chega junto. Como a voz de João ao cantar um samba.
Em narrativa embasada em pesquisas e depoimentos, além do rico conhecimento angariado pelo autor ao longo da vida, Zuza revela bastidores de gravações de discos, analisa álbuns, explica as sutilezas do canto de João (que recorria muitas vezes às mesmas músicas porque sempre as reapresentava com alguma bossa nova) e, sem jamais cair no terreno da fofoca, segreda informações que permitem entender melhor a personalidade do gênio.
Era preciso saber lidar com João. Sabedoria que Caetano Veloso e outro João, o Bosco, tiveram quando fizeram turnê com João Gilberto pelo exterior. Cabe mencionar, no depoimento de Bosco, a informação de que ele afinava o violão do colega com afinador digital do instrumento, mas deixava João Gilberto acreditar que a afinação tinha sido feita por ele próprio, Bosco, chamado de Johnny pelo músico baiano, arisco a artifícios digitais.
Mais para o fim da vida de João Gilberto, quando o gênio já andava triste, o livro Amoroso expõe a relação próxima do artista com outro violonista baiano, Cezar Mendes, compositor desde 1997 e autor, em parceria com o letrista de Arnaldo Antunes, da canção João (2019), ouvida e avalizada pelo homenageado.
“Ele chorou quando ouviu”, revela Mendes, acrescentando, emocionado, que João pediu para cantar João.
Não houve tempo. João Gilberto foi morar no infinito aos 88 anos, saindo do corpo físico em 6 de julho de 2019, seis décadas após ter inaugurado uma nação mapeada por Zuza Homem de Mello em Amoroso, biografia fundamental, à altura do biografado e do biógrafo.