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‘Intensivão’ do funk: os bastidores de uma maratona de criação frenética com os maiores MCs do estilo

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g1 entrou na mansão onde os maiores MCs e DJs de SP passam 7 dias para criar juntos mais de 100 músicas, comem montanhas de sushi e enlouquecem advogados; leia relato. Cenas da maratona de funk promovida por sete dias em uma mansão no Morumbi, em SP, com os principais MCs da cidade, como Hariel, G15, Ryan, Pedrinho, Neguinho do Kaxeta, Magal e muitos outros, criando dezenas de música por dia
Divulgação / GR6 / Instagram
Cinco jovens advogados tentam decifrar os nomes rabiscados em um papel amassado enquanto discutem em uma mesa de reuniões no terceiro andar de uma mansão no Morumbi, na Zona Sul de São Paulo.
“O certo amanhã é conversar com os DJs antes de começar”, grita uma delas de trás de um notebook. Os colegas discutem e tentam falar mais alto que os estouros que saem de um estúdio ao lado e mais cinco salas de gravação nos andares abaixo.
A parede está cheia de discos de ouro de Matheus & Kauan. O dono da mansão luxuosa transformada em estúdio é Kauan. Mas de 7 a 12 de fevereiro ela está alugada pela produtora de funk GR6 para um projeto ambicioso: o maior “intensivão” do funk do Brasil.
A linha de montagem tem os maiores MCs e DJs de SP em dezenas de colaborações por dia. É esse ritmo frenético que enlouquece a equipe jurídica da GR6. A tarefa deles é fazer o registro legal das músicas em tempo real – 50 faixas foram criadas só nos 2 primeiros dias dos 7 marcados.
O som da mansão segue a linha de sucesso do funk atual: faixas longas, que costumam passar dos dez minutos e dos dez artistas, entre DJs. cantores e autores. O tal papel amassado com garranchos tinha os créditos anotados por um DJ de uma das faixas a serem registradas.
A música pop mundial está cheia de “camps” – ou “acampamentos”, reuniões de compositores para passar dias compondo. A “Feira da Música” é mais do que isso: é tudo não só composto, mas também gravado, produzido, finalizado e registrado lá – sem parar.
O material vai abastecer durante meses o mercado de funk – tanto de artistas da GR6, maior empresa do estilo, quanto outros de agências parceiras e até sua antiga rival, a Kondzilla.
O volume de produção profissional em tão pouco tempo, a quantidade de astros criando e gravando juntos, a estrutura de som e produção, o cacife atual da empresa, a presença de executivos de grandes gravadoras, palestras, shows e filmagens: é uma união de fatores inédita em uma maratona de funk.
Dentro de um dos seis estúdios, o MC Hariel lê as rimas que escreveu no celular logo antes nos fundos da mansão , enquanto conversava numa rodinha com os MCs Ryan, G15 e Jottapê, ao som de uma batida seca e arrastada feita pelo DJ Perera.
O Menor da VG improvisa um funk consciente sobre o preço da carne e da gasolina ao som das batidas dos DJs Murillo e LT. Enquanto produz, Murilo come um prato gigante de sushi e oferece um pouco ao repórter do g1.
O clima mistura trabalho pesado e encontrão de amigos. Difícil pensar em alguém mais que não passou ou vai passar por lá: Kevinho, Jerry Smith, Rick, GBR, Pedrinho, Drika, Don Juan…
‘Marvel feat. DC’
A reunião de heróis do público jovem lembra um combo do tipo “Liga da Justiça” ou “Vingadores”. Mas um episódio explosivo da cena funk de SP eleva o patamar: é como se a Marvel e a DC se unissem – a “Liga” e os “Vingadores” colaborando.
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O protagonista desta virada não é um cantor. Na varanda, de olho no movimento da casa, está um homem discreto, de barba grisalha e boné preto. Há poucos meses seria impensável ver Marcelo Gonçalves, o Portuga, dentro dessa mansão.
Portuga foi sócio da GR6 até 2017. Ele rompeu com a empresa e levou parte dos artistas, inclusive o estourado MC Kevinho, se uniu ao dono do maior canal de vídeos de funk do Brasil e fundou a Kondzilla Records.
Antes disso, a GR6 e a Kondzilla eram parceiras. A primeira agenciava os maiores artistas; a segunda produzia os maiores clipes. Quando Portuga rompeu com a GR6 e abriu um setor de agenciamento de cantores na Kondzilla, começou a guerra.
Rodrigo Oliveira, dono da GR6, revidou, e passou também a investir em clipes. Em junho de 2019, o g1 contou como ele conseguiu tirar parte da audiência da Kondzilla no YouTube e esquentar a batalha entre as duas maiores empresas do funk de SP.
Então, o que o cara que saiu da GR6 para fundar a Kondzilla Records estava fazendo na maratona? Por que ele levou seu elenco para colaborar com a empresa concorrente – um incrível “Marvel feat. DC”?
Quem seguia a Kondzilla Records no Instagram tomou um susto há algumas semanas: o nome do perfil mudou para KZMP Records. Portuga diz que está “revendo os termos da sociedade” com Konrad Dantas, diretor de vídeos e fundador da Kondzilla.
Por isso, a empresa que cuida do agenciamento, edição e gravação das músicas de mais de 50 artistas, incluindo Kevinho, Jottapê e Matteuzinho, deixou de usar o nome Kondzilla Records e passou a usar KZMP.
A GR6 ‘jantou’ o funk
Mesa de sushis servida durante a maratona de funk da GR6
Divulgação / Instagram
Na varanda da mansão no Morumbi, Portuga continuou discreto e não quis entrar em detalhes sobre o desentendimento com Konrad. Ele só afirmou que abandonar o nome Kondzilla Records não foi uma decisão repentina, e o desgaste vem de muito tempo.
Na prática, a gravadora só passou a usar outro nome. Ela continua em atividade plena com o seu elenco de 50 artistas. Do alto da varanda, Portuga parou de conversar quando ouviu Jottapê pegar um violão lá embaixo, no jardim da casa.
Jottapê estrela a série “Sintonia”, criada por Konrad Dantas para a Netflix. A empresa investiu no ator-mirim que foi o capanguinha de “Avenida Brasil” e o “Menino da porteira”. Ele era um símbolo da Konzilla Records – agora vai gravar clipe na GR6.
O chefe sorriu aliviado ao ouvir da varanda seu pupilo tocar bem, só no banquinho e violão, a música “Melhor eu ir”, do pagodeiro Péricles.
Em frente ao palco no jardim da mansão, uma roda de anunciantes da GR6 – mulheres de salto alto na grama e homens de blazer, todos brancos – ouvia o pagodinho na voz de Jottapê ao lado de um grupo de funkeiros de bermuda, tênis e cordões dourados.
Um espetáculo ainda mais concorrido acontecia ao lado do jardim, em uma área gourmet climatizada, com uma mesa gigante com centenas de peças de sushi que formavam a sigla GR6. A logo comestível foi um hit – devorado em minutos.
Mesa de sushis após poucos minutos de sucesso durante evento da produtora GR6
Rodrigo Ortega / g1
Inédita de MC Kevin
Rodrigo Oliveira parece estar em todos os cômodos da mansão Ele checa a montagem da logo gigante de sushis, recebe os patrocinadores, confere a gravação de versos do Neguinho do Kaxeta e explica todo o movimento em sua sala no 3º andar.
“Ainda vão vir os diretores da Sony Music, Warner, Universal e Som Livre”, diz o dono da GR6, orgulhoso do interesse das grandes empresas nos seus artistas. São 214 contratados, todos funkeiros com a linguagem de rua.
Seu xodó entre as dezenas de músicas do “intensivão” é um set que será montado a partir de um verso deixado por MC Kevin, artista da GR6 que morreu em 2021 no auge da carreira, aos 23 anos, após cair do 5º andar de um hotel no Rio: “Todos os amigos dele vão cantar.”
Rodrigo diz que o formato dos sets longos e cheios de MCs famosos foi uma solução na pandemia. “Como não tinha show, a gente precisava ter retorno de algum lugar. Já que os artistas não estavam viajando para shows, deu para fazer as parcerias”. Assim as colaborações gigantes bombaram.
O adiamento do carnaval em SP motivou Rodrigo a fazer essa maratona (“com todo mundo vacinado”, ele diz) e reforçar o enorme banco de músicas para abastecer o resto do ano – em um cenário com pandemia fraca e shows fortes no 2º semestre, se tudo der certo.
Ao ser perguntado sobre a presença de Portuga na casa, ele se diz animado: “Acredito que já se inicia uma grande parceria que vem nos próximos meses.” Na quarta-feira (9), a GR6 anunciou a contratação do MC Dede, ex-Kondzilla.
‘Esquece’: Rodrigo Oliveira, dono da GR6
Divulgação / Instagram
A mágica sutil do beat rasteiro
Rodrigo acompanha tudo, mas os verdadeiros engenheiros dos “sets”, as longas parcerias em alta no funk, são os DJs. O maior especialista no ramo é Wayne Fernando da Silva Parreira, 25 anos, o DJ W.
Ele circula pela casa fora da rodinha dos músicos mais famosos, sem o jeito espalhafatoso deles. Nem parece que ele é o criador de hits como o “Set do DJ W 3” e outros sucessos como “Hit do ano” e “Cracolândia”, em parceria com o DJ Alok.
DJ W criou o tipo de batida que é a alma dos sets atuais do funk paulista. É o beat que ele chama de “rasteirinho” – lento e melódico, que resgata um formato do funk carioca do início dos anos 2000, bem antes do ritmo frenético do funk 150.
DJ W
Divulgação / Instagram
A mágica do beat rasteiro é a levada lenta que dá espaço para os MCs se encaixarem, e os elementos melódicos que sugerem o sentimento de forma discreta, sem prejudicar a compreensão dos versos elaborados, que são os elementos principais da música.
“Acho que o beat rasteiro é mais sentimental e a galera consegue absorver mais a letra, a forma de cantar do artista, entrar mais na mente da rapazeada. Ele consegue passar a história e o ouvinte consegue entender”, diz W, simples e direto como suas batidas.
A escalação das vozes também é uma arte. Ele alterna dois tipos. “Se começa com uma voz mais aguda e de melodia, depois vem uma mais grave e de ritmo. Tem que quebrar, se não fica enjoativo”, ele diz. MC Hariel é um cantor mais “da melodia”. GW, Brisola e G15 são mais “graves”, ele exemplifica.
O DJ W cita ainda outra função: o MC que cria o refrão, com um tema forte que amarra toda a parceria.
Um craque nessa função, segundo o DJ W, é o MC Davi. “Ele é o atacante do time, que puxa o refrão e dá um norte para a música. Muitas vezes a cabeça de alguns artistas está bloqueada e ele clareia a ideia de todo mundo. Isso é legal pra caramba”, diz o DJ.
O ‘refrãozeiro’
O meticuloso DJ W não poderia ser mais diferente do falador MC Davi. Dá para entender a admiração mútua e o trabalho complementar. Davi viaja fácil nos beats rasteiros e topa qualquer ideia.
“Acabaram de me pedir uma música levantando as mulheres, que não tenha palavrão mas que seja com a linguagem da rua”, conta Davi. Ele tira o celular e mostra versos que ele escreveu para a tal música, que será cantada por Jerry Smith:
“Essa Anastácia quer um Christian Grey… Deixa com elaaaa, Cinderellaaa, musa da favelaaaa, joga a rabeta para lá e para cá”
Com sorte ela vai entrar na lista de hits de Davi, como “Bipolar”, a última música da GR6 a chegar ao primeiro lugar nacional, em parceria com Don Juan e Pedrinho, ou “Pra inveja é tchau”, parceria de 2018 com MC Kevin.
MC Davi na maratona do funk com DJ Perera
Divulgação / GR6 / Instagram
Davi também foi o líder do “Set dos casados”, fenômeno que escalou 11 cantores em 11 minutos. A letra é um marco para cantores que estouraram adolescentes e viraram adultos – e casados – diante dos fãs, que também cresceram.
Há uma dose de humor, mas também de dificuldades de relacionamento reais da turma dos funkeiros. “Hoje se você fizer uma música de sofrimento e outra divertida, a chance da sofrência explodir é maior”, crava.
Não são só as letras. Há um abismo entre a festa constante nos corredores e o som que não para de sair dos estúdios. “Nos beats existe um sofrimento, uma melodia com uma coisa meio chorosa, meio melancólica”, diz Davi.
O beat seco e a carne cara
Mas abismo de verdade não está entre um cômodo e outro da casa. O contraste maior é entre a euforia e fartura de salmão dentro da mansão do Morumbi e a crise nas periferias de onde todos os músicos vieram e onde a maioria dos fãs vivem.
Na segunda-feira, quando a casa ainda estava vazia e a mesa nem estava montada, um dos primeiros músicos a chegar foi Renato Lima Rodrigues, o Menor da VG. Ele abriu os trabalhos do estúdio 2 com uma música, segundo ele, sobre um “tema atual”.
Menor da VG na Feira da Música da GR6
Divulgação / GR6 / Instagram
“Na música gente fala para a molecada de 16 anos que acha que não tem o dever de votar esse ano. É só pararem para pensar na mãe deles, se ela está empregada ou não, no preço da carne, da gasolina, nas escolas e na saúde, Aí ele vai se sentir no dever de votar”, diz VG.
Como veio a ideia para cantar sobre isso? VG não cita discursos, mas a base rítmica da música como inspiração para cantar sobre a crise. A letra poderia ser festiva, de ostentação ou agressiva. Mas essa batida sugeria outro papo.
“Às vezes o tema já vem pronto. A gente ouve um beat que sugere uma música mais consciente. É mais seco, para fazer uma coisa mais consciente. As ideias vão surgindo assim. O funk é um ritmo da periferia e a gente sempre tem algo para dizer”
“Cheguei aqui tem umas três horas e já participei de duas músicas. A gente para para respirar um pouco, entra outra turma, e volta depois”, conta.
Hariel, Magal e Neguinho do Kaxeta
Divulgação / GR6 / Instagram
Na fila para a próxima turma estava um veterano: MC Neguinho do Kaxeta, 35 anos, mais de uma década mais velho que a média dos cantores por lá.
“Quando eu comecei era difícil até ver um cantor fazer ‘feat’. Cada um fazia o seu”, ele lembra. Kaxeta passou por todas as fases do funk de SP, foi alvo de um atentado a tiros em 2012 e sobreviveu para virar ídolo de parcerias com uma nova geração colaborativa e consciente.
Na espera para gravar seus versos em um set dos DJs Murillo e LT, Kaxeta bate papo outro veterano, o MC Rodolfinho, e recebe instruções de um novato, o MC Luki. Ele mostra empolgado os versos que escreveu para Kaxeta cantar em seguida.
O DJ Murillo, com o pratão de sushi na mesa, grava a música com os versos do MC Luki na voz de Neguinho do Kaxeta. Um trecho da letra é assim:
“Eles querem ser eu, mas carregar o fardo nunca / Só mesmo eu sei o peso da labuta / Aperta a minha mão mas fala que é truta / Mas onde você estava nos dias de chuva?”.
Encontro nos bastidores da feira: MC G15 e MC Dricka
Divulgação / G15 / Instagram

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