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Ideologia de Martinho da Vila dá liga à mistura de álbum familiar

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Aos 84 anos, artista reitera cadências em disco em que reúne filhos, netos e as vozes de Djonga, Teresa Cristina, Xande de Pilares e Zeca Pagodinho entre músicas inéditas e regravações. Capa do álbum ‘Mistura homogênea’, de Martinho da Vila
Divulgação
Resenha de álbum
Título: Mistura homogênea
Artista: Martinho da Vila
Edição: Sony Music
Cotação: * * * 1/2
♪ Assim como o cantor Silvio Caldas (1908 – 1998) anunciou várias vezes a aposentadoria dos palcos, sem de fato sair de cena, Martinho da Vila disse há quatro anos, ao apresentar o disco Bandeira da fé (2018), que pararia de lançar álbuns para editar somente singles.
Desde então, o artista fluminense já encadeou dois álbuns em 2020 – Martinho 8.0 ao vivo – Bandeira da fé: um concerto pop-clássico e o álbum de estúdio Rio: só vendo a vista – e, aos 84 anos, completados em 12 de fevereiro, apresenta Mistura homogênea (2022), em tese o último álbum de discografia iniciada em 1968.
A mistura do disco – gravado com arranjos de Bruno Carvalho, Julio Alecrim, Maíra Freitas, Rafael dos Anjos e Rildo Hora – soará familiar para habituais ouvintes da obra de Martinho, até pela reunião de filhos e netos ao longo das 13 faixas do álbum lançado na noite de quinta-feira, 10 de março, em edição digital da gravadora Sony Music.
Cadências recorrentes no cancioneiro do artista reforçam o D.N.A. do compositor, detectado logo nos primeiros segundos do samba Sim, senhora (2022), feito por Martinho a partir de versos do poeta Geraldo Carneiro e gravado com o filho Tunico da Vila com certa verve sobre a relação de poder entre homem e mulher.
Tais cadências familiares costuram repertório que, entre lampejos da inspiração de outrora, harmoniza músicas inéditas, faixas já lançadas em singles ao longo de 2021 e regravações da obra do artista, caso de Odilê, odilá (1986), parceria com João Bosco revivida por Martinho com os netos Dandara Ventapane e Raoni Ventapane.
A liga da mistura propagada no título no disco vem sobretudo da ideologia desse cantor, compositor e ritmista que sempre levantou a voz – tanto na vida e quanto na música – contra o preconceito racial, a intolerância religiosa e a desigualdade social, bandeiras hasteadas no atual álbum ao lado da bandeira da fé no samba, reverenciado na cadência e nas rimas do partido alto em Vocabulário de um partideiro (2022) com adesões de Xande de Pilares e Zeca Pagodinho.
A prosódia das palavras encadeadas por Martinho na gravação de Vocabulário de um partideiro remete ao universo do rap, território efetivamente pisado pelo sambista na parceria com Djonga em Era de Aquarius (2021), samba-rap que vislumbra mundo feliz sem pandemia e outras mazelas.
Leia também: Martinho da Vila insere poesia e encontro de religiões em álbum: ‘Pensei em juntar todo mundo’
Samba de toque rural evocativo da infância vivida por Martinho da Vila na cidade fluminense de Duas Barras (RJ), Unidos & misturados (2021) – parceria do compositor com Zé Katimba – abre o álbum e sintetiza o conceito do disco, pregando a união em torno do bem comum em gravação que junta Martinho com Teresa Cristina, cantora que se mostra à vontade no laiaraiá de Martinho. Da safra inédita e recente do álbum, Unidos & misturados é a melhor música de Mistura homogênea.
O samba dita o ritmo manemolente de Viva Martina (2022), música em que Martinho perfila Mart’nália, filha mais famosa do artista. Já Vidas negras importam (2021), parceria de Martinho com Noca da Portela, se desvia do terreirão do samba, evoluindo na cadência de xote que, ao discorrer sobre casal inter-racial, defende a igualdade entre seres humanos de todas as cores.
O medley que une a canção angolana Muadiakime (Bonga e Landa) com Semba dos ancestrais (Martinho da Vila e Rosinha de Valença, 1985), cantado por Martinho com a filha Alegria Ferreira, alicerça o elo matricial com a África, também exposto na regravação de Zuela de Oxum (Moacyr Luz e Martinho da Vila, 2003), tema em que o cantor saúda os orixás em feitio de oração, preparando o clima para a faixa seguinte, Oração alegre.
Com fé na convivência harmoniosa entre devotos de todos os credos e sotaques, Martinho professa em Oração alegre a fé na união ecumênica ao convidar o líder muçulmano César Kaab Abdul, o pastor Henrique Vieira e o rabino Nilton Bonder para propagarem mensagens de paz e amor entre as religiões em falas ouvidas sobre o batuque afro-brasileiro do baiano Carlinhos Brown. A faixa emociona.
Djonga e Martinho da Vila cantam parceria no álbum ‘Mistura homogênea’
João Pedro Maia / Divulgação
Egressa da África, a escritora moçambicana Paulina Chiziane se une a Martinho na declamação dos versos que pauta o samba Dois amores (2022), adornado na gravação pelo luminoso toque do bandolim de Hamilton de Holanda. Os dois amores do artista são a música e poesia.
E por falar em poesia, outra declamação introduz Canção de ninar, samba composto por Martinho a partir de versos de Salgado Maranhão.
No fecho do disco, Martinho reúne os oito filhos no desfile (de quase oito minutos) do samba-enredo Canta, canta, minha gente! A Vila é de Martinho! (André Diniz, Dudu Nobre, Evandro Bocão, Leno Dias, Marcelo Valença, Mauro Speranza e Professor Waldimir), com o qual a escola de samba Unidos de Vila Isabel celebrará no Carnaval carioca de 2022, em abril, o legado de Martinho da Vila, compositor fundamental no quesito evolução do samba-enredo.
Martinho é da Vila, mas também do Brasil e da África pela amplitude da obra e da ideologia reiterada em Mistura homogênea, o suposto último álbum do grande artista.

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