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Nora Ney, voz noturna dos fracassados no amor, tem centenário de nascimento ignorado pelo Brasil

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Cantora, que hoje faria 100 anos, está imortalizada pelo tom interiorizado com que difundiu sambas-canção como ‘Ninguém me ama’ em discografia que teve apogeu na década de 1950. ♪ MEMÓRIA – Quando Maria Bethânia reavivou Bar da noite (Bidu Reis e Haroldo Barbosa, 1953) no show Claros breus (2019), em lembrança perpetuada no álbum Noturno (2021), somente os ouvintes mais antenados sabiam que o samba-canção tinha sido apresentado ao Brasil em julho de 1953 na voz de Nora Ney.
Na certidão de nascimento, Nora Ney era Iracema de Souza Ferreira (20 de março de 1922 – 28 de outubro de 2033), cantora carioca que faria 100 anos neste domingo e cuja carreira fonográfica completa 70 anos em 2022.
O Brasil parece ter esquecido o centenário dessa cantora que marcou época nos anos 1950 como a voz noturna dos fracassados no amor. Uma voz grave de contralto que ajudou a popularizar o samba-canção com interpretações que, na contramão do estilo grandiloquente da maioria dos cantores do gênero, expressava o melodrama e as dores de amor em tons mais interiorizados, quase como se estivesse recitando, e não dizendo, os versos desiludidos dos poetas da música.
Pesquisadores musicais costumam destacar o fato de ter sido Nora Ney a primeira intérprete a gravar um rock no Brasil. De fato, em 1955, Nora gravou o seminal rock’n’roll Rock around the clock (Max Freedman e James Myers, 1954) – petardo disparado na voz do cantor norte-americano Bill Haley (1925 – 1981) no ano anterior – no original em inglês, ainda que a versão tivesse sido apresentada com o título em português de Ronda das horas no disco editado em dezembro daquele ano de 1955.
Contudo, em que pese esse fato tão curioso quanto acidental, Nora Ney passou mesmo para a história da música brasileira como intérprete refinada de sambas-canção como Menino grande (1952), joia de ternura antiga com o qual a cantora estreou em disco em 1952, há 70 anos, apresentando o compositor pernambucano Antônio Maria (1921 – 1964).
De Maria, Nora lançaria ainda no mesmo consagrador ano de 1952 outro blockbuster, Ninguém me ama (1952), samba-canção composto por Maria com o parceiro Fernando Lobo (1915 – 1996). O canto íntimo e quase sussurrante de Nora Ney a credenciava para dar voz a essas músicas vocacionadas para serem ouvidas no escurinho esfumaçado das boates e bares, redutos de mágoas afogadas em álcool.
Nora Ney em capa de álbum de 1958
Reprodução
É nesse universo que se ambienta De cigarro em cigarro, samba-canção de Luiz Bonfá (1922 – 2001) apresentado na voz de Nora Ney em disco de 78 rotações editado em março de 1953. Que outra voz era mais talhada para ruminar a impaciência e o ressentimento entranhados em Aves daninhas (1954), samba-canção de Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974), compositor cuja obra é pote-até-aqui-de-mágoa?
No áureo início de carreira fonográfica, Nora Ney também teve a voz veiculada em filmes como Carnaval Atlântida (1953) e Carnaval em Caxias (1954), como era praxe em época em que o cinema era também a plataforma audiovisual da música. E, seguindo o protocolo da época, também foi cantora do rádio.
Finda a década de 1950, marcada em 1958 pela revolução da Bossa Nova, a discografia de Nora Ney perdeu impulso. Talvez porque a cantora não tenha renovado o repertório com o fim da era de ouro do samba-canção.
Nora chegou a gravar um ou outro álbum, caso de Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor (1972), no qual deu voz a dois sambas amargurados de Nelson Cavaquinho (1911 1986) e Guilherme de Brito (1922 – 2006), entre revisitações do cancioneiro que lançara na primeira metade dos anos 1950.
A rigor, Nora Ney pareceu ter ficado musicalmente presa a um passado de glória, o que a impediu de alçar outros voos artísticos ao fim da era áurea. E assim foi até a cantora sair de cena em 2003, aos 81 anos.
Como esse passado é tão forte, a voz de Nora Ney está imortalizada na história da música popular do Brasil, país que jamais deveria deixar passar em branco o centenário de nascimento dessa memorável voz dos fracassados no amor.

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