Festas e Rodeios

Assucena, voz do extinto trio As Baías, costura referências e temas autorais em atraente show solo

Published

on

Artista canta músicas dos repertórios de Gal Costa e Elis Regina entre composições de lavra própria em apresentação no Rio de Janeiro com o toque do violonista e guitarrita Rafael Acerbi. Resenha de show
Título: Minha voz e eu
Artista: Assucena
Local: Manouche (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 28 de abril de 2022
Cotação: * * * *
♪ Agora Assucena é uma estrela que conta somente com o próprio brilho para atrair atenções e ouvintes, devidamente conquistados na estreia carioca do show Minha voz e eu no palco do clube Manouche na noite de ontem, 28 de abril.
Após a dissolução do trio paulistano As Baías (2015 – 2021) em setembro, por dissonâncias artísticas, a cantora e compositora baiana começou a pavimentar carreira solo. O ponto de partida foi a estreia em São Paulo (SP), em dezembro, do show Rio e também posso chorar – Fatal 50 (2021), tributo aos 50 anos do emblemático álbum ao vivo Gal a todo vapor – Fa-Tal, gravado em 1971 por Gal Costa, referência assumida de Assucena.
Na sequência, já neste ano de 2022, Assucena iniciou a discografia solo em janeiro com o single autoral Parti do alto, ao qual se seguiu um segundo single, Ela, apresentado em 22 de abril com regravação da música de César Costa Filho e Aldir Blanc (1946 – 2020) que deu nome ao álbum lançado por Elis Regina (1945 – 1982) em 1971.
Feito por Assucena na companhia do guitarrista e violonista Rafael Acerbi, colega da cantora no extinto trio As Baías, o show Minha voz e eu costurou as trilhas e referências da vida da artista com temas autorais em roteiro aberto com Saudade de Itapuã (Dorival Caymmi, 1948), referência à origem baiana da artista nascida na interiorana cidade de Vitória da Conquista (BA).
Já nesse número inicial ficou claro que Assucena sabe interpretar uma música, impressão corroborada ao longo da apresentação.
A potência da voz foi usada a serviço das canções, dando o recado dos compositores e, por vezes, adicionando um sentido próprio às letras alheias, como em Pérola negra (1971), balada bluesy de Luiz Melodia (1951 – 2017) que adquiriu carga emocional específica no canto de Assucena porque, como a artista ressaltou em cena, versos como “Tente usar a roupa que eu estou usando” e “Tente entender tudo mais sobre o sexo” têm significado profundo na vida de transexuais e travestis. Cantada sobre base eletrônica que soou como mantra de efeito hipnótico, Pérola negra apareceu já na parte final do show.
O roteiro partiu das origens da artista. Após balançar o vento de Caymmi para expiar a saudade que faz de Itapuã uma paisagem tão melancólica quanto nostálgica, a cantora partiu para a caatinga, remoendo Esperança no Cafundó (Assucena, 2015) no tom árido do sertão baiano.
Por ser de lá, na certa por isso mesmo, Assucena soube expressar todo o paladar nordestino de O gosto do amor (1978), composição forrozeira de Gonzaguinha (1945 – 1991), apresentada por Gal Costa em gravação feita com o autor para o álbum Água viva (1978). Entre a aridez e a malícia, Assucena brilhou ao reviver O gosto do amor com interpretação teatral que terminou orgiástica com a elevação da voz em tons agudos evocativos do canto matricial de Gal em sincronia com o solo da guitarra de Rafael Acerbi.
Na sequência, no mesmo clima quente, a cantora deu o toque político de Sua tez (Assucena, 2017) ao cantar a composição autoral em que denuncia a proibição dos desejos manifestados fora da ordem heteronormativa.
Seguindo em linha confessional, Assucena deu voz ao samba O nome da coisa (Assucena, 2019) na abertura de bloco de violão, tocado por Rafael Acerbi ao lado da artista. Nesse bloco, a cantora também caiu marota no samba Pica pau (Assucena, 2017), sublinhando com olhares e gestos todo o duplo sentido dos versos de erotismo explícito.
Entre um samba e outro, a interpretação de Dindi (Antonio Carlos Jobim e Aloysio de Oliveira, 1959) mostrou que Assucena é cantora para ser levada a sério e, por isso mesmo, seria salutar que, em cena, a intérprete procurasse controlar a incontinência verbal para manter a fluência do show.
Até porque não é toda cantora que consegue transmitir a densidade da narrativa de Ela, samba-canção que reapareceu no bis em cadência mais dançante, evocativa da levada do samba-rock, em arranjo que pôs em segundo plano a letra, devidamente interpretada por Assucena na primeira abordagem, com citação de A menina dança (Moraes Moreira e Luiz Galvão, 1972). Ela também adquiriu sentido político na voz de Assucena por enfatizar pronome feminino na voz de cantora trans.
Com toque flamenco no arranjo, A isca (Assucena, 2017) fisgou atenções antes de a cantora realçar, em suave tom agridoce, o desalento de Como 2 e 2 (Caetano Veloso, 1971), número herdado do show Rio e também posso chorar – Fatal 50.
Em mais incursões pelo repertório das Baías, trio que deixou os bons álbuns Mulher (2015) e Bixa (2017), além do terceiro e irregular Tarântula (2019), a cantora fez Fumaça (Assucena, 2017) e cantou a balada-blues Das estrelas (Assucena, 2019) em ritmo de reggae antes de encerrar o show com Parti do alto (Assucena, 2022).
Corajosa ao se lançar solo em show cujo roteiro enfatizou a produção autoral da compositora, opção reiterada no bis com a abordagem de Uma canção para você (Jaqueta amarela) (Assucena, 2015), Assucena mostrou que tem voz, obra e habilidade como intérprete. Ou seja, tem tudo para se tornar uma estrela solo.
Basta se mirar no exemplo de Gal e Maria Bethânia – referências nominadas em cena – e dosar os comentários (uns pertinentes e necessários pela questão política, outros irrelevantes) entre um número e outro para deixar que o canto, pleno de sentidos e emoções, fale por si só.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Trending

Copyright © 2017 Zox News Theme. Theme by MVP Themes, powered by WordPress.