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Elza Soares transcende ao portar o estandarte da arte em show no Theatro Municipal de São Paulo

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Álbum ao vivo e DVD póstumos legam para a posteridade a fala, a opinião e a voz da cantora. Capa do álbum ‘Elza ao vivo no Municipal’, de Elza Soares
Victor Affaro
Resenha de álbum ao vivo e DVD
Título: Elza ao vivo no Municipal
Artista: Elza Soares
Edição: Deck
Cotação: * * * * *
♪ “Lata d’água na cabeça / É o estandarte que representa minha arte / Jogo de cena é a fome / Negra sempre foi o meu nome / Mas digo isso porque / Tenho o samba pra me defender”.
Quando Elza da Conceição Soares (23 de junho ou 22 de julho de 1930 – 20 de janeiro de 2022) canta no palco do Theatro Municipal de São Paulo os versos do samba Lata d’água (2003), escritos pela própria Elza e apresentados há 19 anos na voz da cantora na gravação que encerra o álbum eletrônico Vivo feliz (2003), fica nítido o caráter transcendental do registro audiovisual do último show da artista, captado em 17 e 18 de janeiro deste ano de 2022, dois dias antes de Elza sair de cena.
Na infância e adolescência vividas no subúrbio carioca, Elza foi uma das muitas incansáveis Marias que descem o morro com a lata d’água (ou com a trouxa de roupa) na cabeça para lutar pela vida e, por isso, a compositora bissexta aludiu no samba de 2003 ao samba homônimo de 1952 – de autoria dos compositores Luiz Antônio (Antônio de Pádua Vieira da Costa) e Jota Júnior (Joaquim Antônio Candeias Júnior) – que a cantora Marlene (1922 – 2012) lançou há 70 anos na era do rádio.
Sim, Elza desceu o morro, subiu os degraus da fama e, mesmo com muitas quedas no percurso acidentado da visa, a artista se elevou no planeta fome com a bossa negra da voz rouca e chegou ao palco mais nobre da cidade de São Paulo (SP) para gravar o show criado e dirigido por Pedro Loureiro para gerar álbum ao vivo que se tornou póstumo e que foi lançado na última sexta-feira, 13 de maio, pela gravadora Deck.
No vídeo que será reproduzido em DVD ainda inédito no mercado, a primeira imagem é da fachada do Theatro Municipal de São Paulo. Na sequência, como se fosse o olho voyeur do espectador, a câmera adentra o teatro, sobe as escadarias e guia o ouvinte até o salão onde, somente com o toque do piano de Fábio Leandro, Elza expia a dor materna do samba O meu guri (Chico Buarque, 1978), cantado como canção dilacerada pelas perdas de filhos.
Somente após esse número inicial é que vê-se Elza, vestida de branco, entronizada no palco do teatro paulistano, personificando a transcendência que muitas Marias nunca conseguiram alcançar.
E talvez por isso, sob a direção musical de Rafael Ramos, a cantora também extrapole rótulos, épocas e gêneros musicais no show, seguindo geralmente a cadência do samba esquema noise que pauta grande parte do roteiro de 15 músicas que, se desviando da missão de criar best of de discografia que totalizou 35 álbuns lançados pela artista entre 1960 e 2021, oferece recortes biográficos da vida de Elza.
Elza Soares (1930 – 2022) canta 15 músicas no álbum e DVD ‘Elza ao vivo no Municipal’
Victor Affaro
Esses recortes aparecem através dos versos de sambas como Dura na queda (Chico Buarque, 2000), O morro (Mauro Duarte e Ivone Lara, 1979) – joia rara da obra fonográfica da cantora – e Volta por cima (Paulo Vanzolini, 1962), além de Salve a Mocidade (Luiz Reis, 1974), cuja gravação original é amostra lapidar da quentura da voz de Elza, e de Se acaso você chegasse (Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, 1938), samba que possibilitou o grande salto da cantora em 1959 e que reverbera com tempero latino em Elza ao vivo no Municipal.
Com o baticum dos percussionistas Felipe Roseno e Mestre da Lua, os synths de Lucky Luque, o toque contemporâneo da bateria de Thomas Harres e as guitarras de Rovilson Pascoal e Ricardo Prado, Elza reina e se eterniza no Municipal, expondo a face política de Comportamento geral (Gonzaguinha, 1972), enegrecendo a bossa de Balanço zona sul (Tito Madi, 1963) e caindo bem no balanço ainda moderno do samba-rock Saltei de banda (Zé Rodrix e Luiz Carlos Sá, 1972), grata surpresa do repertório.
A força da história de vida impressa no rosto de Elza Soares em cada número do DVD – entrecortado por depoimentos em vídeos e/ou áudios de personalidades como Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Chico Buarque, Lázaro Ramos, Paulo Gustavo (1978 – 2021), Regina Casé, Rita Lee e Taís Araújo – redime a imobilidade da artista em cena e o canto já sem (todo) o suingue e o volume de outrora pelos efeitos naturais dos 91 anos da intérprete, mas ainda e sempre um canto preciso, significativo, combativo. A voz de uma pessoa vitoriosa.
Com essa voz bem tratada, Elza revive Malandro (Jorge Aragão e Jotabê, 1976) na cadência do samba mais tradicional – em arranjo que põe em evidência o toque do cavaco de Rovilson Pascoal – e mantém elevada a cotação de A carne (Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, 1998) com discurso que se afina com o brado contra a violência doméstica, mote de Maria da Vila Matilde (Douglas Germano, 2015).
Banho (Tulipa Ruiz, 2018) exemplifica a modernidade do som de Elza ao vivo no Municipal. Mas nenhuma música impacta tanto no DVD quanto A mulher do fim do mundo (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2015) pelo simbolismo do emocionante número final.
Sim, Elza da Conceição Soares cantou até o fim. Cantou até transcender o plano físico e se imortalizar como deusa mulher e negra no panteão da música brasileira, deixando para a posteridade a opinião, a fala e a voz vitoriosa que nunca se calou e que, por isso mesmo, elevou a cantora na vida e na arte. Arte que a cantora portou como estandarte – com a habitual valentia – no palco do Theatro Municipal de São Paulo nesse show que resume bem o legado de Elza da Conceição Soares.

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