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Musical sobre Leci Brandão honra a militância da artista com teatralidade vivaz e elenco afinado

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Em cartaz no Rio de Janeiro, a encenação de Luiz Antonio Pilar se engrandece ao expor a luta da cantora e compositora carioca por justiça social e pela valorização do povo negro, entre outras questões políticas. Tay O’Hanna vive Leci Brandão com brilho no musical em cartaz no Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro (RJ), até 12 de fevereiro
Valmyr Ferreira / Divulgação
Resenha de musical de teatro
Título: Leci Brandão – Na palma da mão
Texto: Leonardo Bruno – com adaptação dramatúrgica de Lorena Lima, Luiz Antônio Pilar e Luiza Loroza
Direção: Luiz Antonio Pilar
Elenco: Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sergio Kauffmann
Local: Mezanino do Sesc Copacabana (Rio de Janeiro, RJ)
Data: Sessão de 21 de janeiro de 2023
Cotação: ★ ★ ★ ★ ★
♪ Identificada no teatro, no cinema e na TV pela difusão dos legados de artistas engajados na luta pela afirmação da relevância e da soberania afro-brasileira na formação da cultura nacional, a trajetória do diretor e produtor carioca Luiz Antonio Pilar o credencia a orquestrar a cena do musical Leci Brandão – Na palma da mão, espetáculo de teatro em cartaz no Mezanino do Sesc Copacabana até 12 de fevereiro, de quinta-feira a domingo.
É que a história da cantora, compositora e política carioca Leci Brandão somente poderia ser encenada por um diretor plenamente consciente da militância dessa artista comprometida na vida e na música com ideais de justiça social que englobam a luta antirracista, a denúncia da opressão do povo pobre, a propagação da religiosidade afro-brasileira e a defesa dos direitos da comunidade LGBTQIAPN+, entre outras questões sociais e políticas.
Homossexual assumida, a ponto de em novembro de 1978 ter dado entrevista reveladora ao jornal Lampião da esquina, numa época que se assumir lésbica poderia significar sentença de morte artística, Leci Brandão foi a primeira cantora brasileira famosa a mostrar a cara sem medo. Apanhou, mas revidou com a música, fazendo da obra um palanque pacífico para a veiculação da ideologia que a artista – nascida em 12 de setembro de 1944 – vem defendendo com coerência ao longo dos 78 anos de vida.
Toda a militância pioneira da artista ressoa na teatralidade vivaz do musical Leci Brandão – Na palma da mão em narrativa costurada por cantos e signos do Candomblé.
Verônica Bonfim (com Tay O’Hanna no colo) canta ‘Ombro amigo’ em número introspectivo do musical ‘Leci Brandão – Na palma da mão’
Valmyr Ferreira / Divulgação
Ao entrar pela porta que o conduz às cadeiras dispostas no Mezanino do Sesc Copacabana, o público é recebido pelo ator, cantor e músico Sergio Kauffmann, intérprete de saudação a Exu nessa introdução e espécie de mestre de cerimônias que se reveza ao longo do espetáculo em vários papéis masculinos.
Quando a ação começa efetivamente a se desenrolar, o texto permanece centrado na relação afetuosa entre a cidadã brasileira Leci Brandão da Silva e a mãe, Lecy de Assumpção Brandão, a Dona Lecy, morta em 26 de julho de 2019, aos 96 anos.
Essa opção dramatúrgica se revela acertada porque Dona Lecy – representada em cena por Verônica Bonfim – foi o esteio da filha Leci, vista em cena na pele da atriz Tay O’Hanna. Dona Lecy foi um baobá, simbolicamente representado no palco pela árvore de 2,50m fincada no palco pela cenógrafa Lorena Lima entre pedras e as folhas secas dispostas no chão que é o próprio palco.
Tão simples quando bela e eficiente, a cenografia também evoca o terreiro de onde brota o samba batido na palma da mão, de onde surge o partido alto recorrente no roteiro musical do espetáculo, aberto, após a saudação a Exu, com o já antológico samba-enredo História pra ninar gente grande (Tomaz Miranda, Deivid Domênico, Luiz Carlos Máximo, Mama, Márcio Bola, Ronie Oliveira, Danilo Firmino e Manu da Cuíca), trunfo da Mangueira no Carnaval de 2019.
Com sambas como Folhas secas (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, 1973) e Sala de recepção (Cartola, 1976) tocados em versões instrumentais alusivas a ligação de Leci com a escola verde-e-rosa, o roteiro é dominado pela obra autoral da compositora de Eu só quero te namorar (Leci Brandão, 2000), número empático no musical.
É através dos diálogos entre mãe e filha – pontuados por intervenções de Sergio Kauffmann – que o texto expõe os traços mais relevantes da biografia da infância, adolescência e juventude de Leci até a projeção alcançada nos anos 1970, inicialmente como a primeira mulher a ser admitida na Ala de Compositores da escola de samba Mangueira em 1972 e, na sequência, com a gravação do primeiro disco em 1974 – um EP com quatro músicas que antecedeu o primeiro álbum, Antes que eu volte a ser nada (1975).
O musical lembra que Leci Brandão achou que tinha voltado a ser nada na primeira metade da década de 1980, período em que a cantora amargou anos longe das rádios e dos estúdios, até voltar ao disco em 1985 com o bem-sucedido álbum que gerou os partidos altos Papai vadiou (Rode do Jacarezinho e Gaspar do Jacarezinho) e Isso é fundo de quintal (Leci Brandão e Zé Maurício), evidentemente cantados em cena, além de Zé do Caroço (Leci Brandão), hoje um hino que poderia ter sido apresentado cinco anos antes, em 1980, se a diretoria da gravadora Philips tivesse lançado a gravação original arquivada e somente editada por Rodrigo Faour após 31 anos na coletânea O canto livre de Leci Brandão (2011).
A propósito, a cena em que o trio de atores sintoniza várias estações de rádio com as sucessivas gravações de Zé do Caroço por vários artistas – antes de o elenco dar o microfone ao público para que os próprios espectadores cantem o samba – é um dos muitos exemplos do frescor da encenação do diretor Luiz Antonio Pilar.
O ator e músico Sergio Kauffmann com a atriz Tay O’Hanna em cena do musical ‘Leci Brandão – Na palma da mão’
Valmyr Ferreira / Divulgação
A encenação foi construída sob direção musical de Arifan Junior, com a intenção de criar um clima de roda de samba, propício para a veiculação de partidos altos como As coisas que mamãe me ensinou (Leci Brandão e Zé Maurício, 1989) e o pouco ouvido Gente negra (Leci Brandão, 1984) com os toques dos músicos Lucas Badeco (percussão), Matheus Camará (violão e clarinete), Rodrigo Pirikit (violão, cavaquinho e agogô) e Thainara Castro (percussão) e com as vozes do trio de atores.
E, justiça seja feita, toda a vivacidade da encenação de Pilar somente se sustenta graças ao talento do elenco afinado. Dona de voz expressiva, Tay O’Hanna brilha na pele de Leci com o mix de doçura e impetuosidade que caracteriza a veterana artista na militância diária, traduzindo no olhar os momentos de introspecção e melancolia da vida da cantora.
Um deles é protagonizado por Verônica Bonfim – igualmente impecável na pele da mãe Dona Lecy – no canto de Ombro amigo (Leci Brandão, 1977) com a filha no colo, entristecida. Além de ser umas das mais belas criações da obra autoral de Leci, Ombro amigo é música historicamente relevante porque, na letra, a compositora se dirigiu aos gays com afago corajoso em tempos ditatoriais, época de armários cheios de medo e desconfiança.
Musical de estrutura pequena, Leci Brandão – Na palma da mão é espetáculo que se engrandece pelo que é (ex)posto em cena com o talento e criatividade da equipe. A essência da história de Leci está contada, até porque, nessa trajetória musical e política, a militância pioneira da artista é o que realmente fez e faz diferença.
Sob tal prisma, o espetáculo de Luiz Antonio Pilar ratifica a dignidade de Leci Brandão e honra o legado vivo da artista, pondo o espectador na palma da mão.

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