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Country acusado de racismo reúne sucessos e domina paradas musicais dos Estados Unidos

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Três dos maiores hits americanos nas últimas semanas são de artistas country envolvidos em casos acusados de racismo; gênero é repleto de controversas raciais. Um gênero musical tem dominado as paradas de sucesso dos Estados Unidos: country acusado de racismo. Não que o conceito seja propriamente um estilo, mas é a melhor definição para as semelhanças entre faixas que vêm liderando a Billboard Hot 100, ranking de audiência americana da revista “Billboard”, nas últimas semanas.
“Try That In A Small Town”, de Jason Aldean, é o caso mais emblemático. A música entrou para a lista das mais ouvidas logo após se tornar alvo de uma enxurrada de críticas raciais, em julho. Só o início da polêmica foi capaz de aumentar as reproduções da canção em 999%, mostram os dados da agência Luminate.
O videoclipe da faixa, que, depois das críticas, foi editado e excluído do canal do YouTube da Country Music Television, traz imagens reais do movimento Black Lives Matter e, ao mesmo tempo, cenas de bandidos em ação. Também contém discursos pró-polícia e um cenário que ficou marcado pelo assassinato de um homem negro.
O músico Jason Aldean
Reprodução/YouTube
Em meio a um bate-boca virtual, com direito a participação de políticos republicanos e ativistas negros, a faixa ocupou o topo da Hot 100 por cerca de 20 dias. Bastou a poeira abaixar, no entanto, para que “Try That In A Small Town” descesse, nesta semana, para a 21ª posição.
Agora, quem lidera o ranking é Morgan Wallen, com “Last Night”. Assim como seu antecessor, o artista é um dos principais nomes do country acusado de racismo.
Músico mais famoso do country contemporâneo, Wallen tem a pecha de racista desde 2021, quando pronunciou a palavra “nigger” — termo altamente pejorativo para se referir a “negro” nos Estados Unidos —, o que lhe fez perder temporariamente contrato com gravadora, espaço em rádios e até indicação a prêmios.
Morgan Wallen durante a 56ª edição do CMA Awards, em Nashville, em novembro de 2022
Evan Agostini/Invision/AP
Abaixo do artista, está Luke Combs, com “Fast Car”. E se você pensou que este é mais um nome country a ser associado ao racismo, acertou.
Ainda que não seja o mesmo nível das críticas contra Aldean e Wallen, as polêmicas envolvendo o músico causaram discussões acaloradas. Em 2015, por ele ostentar a bandeira dos Estados Confederados, no videoclipe “Can I Get a Outlaw”, e agora, por emplacar seu mais novo hit a partir de uma composição de Tracy Chapman, que é negra.
Mas o sucesso das músicas citadas não reflete apenas interesse pelas obras, ou pelos artistas. É também um reflexo das guerras culturais que hoje inflamam os Estados Unidos.
Deus abençoe à América
A letra de “Try That In A Small Town” traduz bem o sentimento patriota da onda nacionalista que cada vez mais ganha espaço nos palanques do país.
“Tente isso em uma cidade pequena/ veja quão longe conseguirá chegar na estrada/ por aqui, cuidamos dos nossos/ se você cruzar a linha, não demorará muito/ para descobrir/ eu recomendo que não tente isso em uma cidade pequena”, canta Aldean.
O videoclipe mostra cenas da bandeira americana sendo violada e faz dela um símbolo de resiliência. Tem até um grafite de “Deus abençoe à América”.
Cena do clipe ‘Try That in a Small Town’, de Jason Aldean
Reprodução/YouTube
As cenas exibem ainda bandidos, vândalos e manifestantes. Sua versão original tinha imagens de protestos do Black Lives Matter — um dos movimentos negros mais famosos dos Estados Unidos —, mas o trecho desapareceu após críticas pela comparação entre ativistas e criminosos.
Outro ponto controverso foi o cenário do clipe, o Tribunal do Condado de Maury, em Columbia, onde um jovem negro foi enforcado numa janela, em 1927.
“Não há uma única letra na música que faça referência a raça, ou lhe aponte”, afirmou o artista, ao rebater as acusações. “Embora eu possa tentar respeitar os outros para terem a própria interpretação da canção, esta vai longe demais.”
Apesar de ter incomodado a muitos, o músico também foi vangloriado pela obra — a maioria dos elogios surgiu em resposta à onda de ataques contra ele.
“Jason Aldean é um cara fantástico que acabou de lançar uma ótima música. Apoie Jason o tempo todo”, disse o ex-presidente americano Donald Trump.
Os governadores republicanos Ron DeSantis e Dakota do Norte também o elogiaram.
Se grande parte do sucesso de “Try That In A Small Town” se explica pelo zeitgeist do nacionalismo contemporâneo, polarização política e guerra cultural, sua possível relação com o racismo vai ao encontro da própria história do country, gênero que sempre foi rodeado de controversas raciais e é predominantemente branco.
A linha de cor musical
O country surge na década de 1920, usando estéticas do blues, harmonias simples e instrumentos de corda como violão, banjo africano e bandolim italiano.
Apesar das raízes multirraciais e multiétnicas, o gênero logo incorporou valores racistas, a partir da indústria fonográfica americana, que desabrochou, na mesma época, e foi bastante influenciada pelas chamadas leis de Jim Crow — código de regras estabelecido no sul dos Estados Unidos para segregar negros e brancos, entre os anos de 1877 e 1965.
Segundo Flavio Ribeiro Francisco, especialista na questão racial americana, o período foi marcado por uma reorganização hierárquica do pós-abolição da escravidão.
“As condições materiais dos negros”, ele diz, era visivelmente inferior a dos brancos, mas mesmo assim, havia uma ideia forjada instrucionalmente de que segregação era o mesmo que igualdade.
É nesse contexto que se criou o que pesquisadores nomeiam como “linha de cor musical”, a dinâmica racista das gravadoras do período.
Musicóloga especializada em raça e gênero, Jada Watson afirma que as gravadoras não só fizeram questão de separar os músicos pelo critério racial, como também de comercializá-los para públicos diferentes.
“Artistas negros foram gravados em discos [apelidados como] ‘race’. Artistas brancos, em ‘hillbilly'”, diz ela. “Com o tempo, os discos de ‘race’ foram renomeados para ‘soul’ e/ou ‘R&B’. E ‘hillbilly’ ficou conhecido como música country.”
“Nos primórdios da indústria, artistas como Solomon Burke, Ray Charles e Esther Phillips gravavam músicas country, mas nunca eram tocados em rádios country. Apenas nas de R&B.”
Na década de 1970, Charley Pride, de “Kiss an Angel Good Mornin'”, se tornou o primeiro negro a ter um sucesso realmente significativo no country.
Ainda assim, sua fama não foi capaz de revolucionar a indústria. E o gênero continuou a ser dominado por brancos, que, muitas vezes, trouxeram letras que demonizam centros urbanos — sim, como “Try That In A Small Town” —, lugares que, no pós-Segunda Guerra dos Estados Unidos, eram associados a comunidades negras.
O caubói moderno
Segundo Watson, a mesma engenharia racista de cem anos atrás continua em voga. Dados da SongData, centro de pesquisas musicais fundado pela especialista, mostram que, nos últimos três anos, a maioria das músicas de rádios americanas country praticamente não saiu do lugar. Caiu de 91%, em 2020, para 89,8%, em 20
Don Cusic, historiador voltado à música americana, afirma que, apesar do espaço restrito aos negros, há hoje maior abertura para o entendimento de que o gênero pode se unir a estilos urbanos.
Nomes como Lil Nas X, DaBaby, Lil Tracy e Young Thug têm músicas que mesclam country com trap. Ainda assim, é comum serem mais associados ao rap.
Em 2019, Lil Nas X se tornou centro de uma polêmica, depois que a “Billboard” removeu sua “Old Town Road” da Hot Country Songs. O argumento da revista foi de que a faixa não tinha os elementos necessários para compor a lista. O músico rebateu dizendo que ela vale para mais de um ranking.
Cantor Jason Aldean causa polêmica com clipe nos Estados Unidos
Para Watson, uma mudança efetiva que afaste o country da fama de racismo “só vai acontecer quando as estruturas e práticas da indústria forem questionadas e reconceituadas, com uma avaliação holística para entender como o sistema é racista”.

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