Fernando Meirelles, Bráulio Mantovani e Guilherme de Almeida Prado falam sobre vez em que produção não foi indicada a melhor filme em língua estrangeira — e como isso foi bom. Há 20 anos, ‘Cidade de Deus’ concorria a 4 Oscars depois de não ser indicado em 2003
20 depois do Oscar 2004, quando “Cidade de Deus” recebeu quatro indicações inéditas para o Brasil, muita gente lembra errado do que aconteceu.
Respeitado ao redor do mundo, o filme brasileiro ainda aparece em inúmeras listas de melhores de todos os tempos – inclusive da imprensa de Hollywood.
Talvez por isso, até hoje há quem justifique a ausência da produção na categoria de melhor filme internacional – filme em idioma estrangeiro, na época – em 2003 com uma suposta esnobada do próprio Brasil, que teria selecionado outro representante.
E isso absolutamente não é verdade. O filme foi escolhido, sim, pelo país – quem não o indicou foi a Academia de Hollywood.
Para a surpresa de todos, a coisa mudou no ano seguinte. Em 2004, a produção concorreu a direção (Fernando Meirelles), roteiro adaptado (Bráulio Mantovani), montagem (Daniel Rezende) e fotografia (César Charlone).
Por isso, o g1 conversou com Meirelles, Mantovani e o cineasta Guilherme de Almeida Prado, membro da comissão que escolheu o filme para 2003, para contar os bastidores da reviravolta. Assista ao vídeo acima.
O que aconteceu, afinal?
Para poder ser indicado ao Oscar, um filme precisa ser selecionado por uma organização de seu país de origem. Atualmente, no Brasil, isso é tarefa da Academia Brasileira de Cinema.
Em 2002, quando “Cidade de Deus” estreou, a responsabilidade ainda era da Agência Nacional de Cinema (Ancine).
Ao contrário do que muitos lembram, a comissão – formada por Almeida Prado, Walter Lima Júnior, Zita Carvalhosa e Maria do Rosario Caetano – escolheu, sim, o filme dirigido por Meirelles.
Diretor de filmes como “A dama do cine Shanghai” e “Perfume de Gardênia”, Almeida Prado diz que a decisão foi unânime.
“Eram umas cinco ou seis pessoas, no máximo. Eu lembro que o Walter Lima Júnior nem foi à reunião, porque disse que era tão óbvio o filme, que ele mandou escrito: ‘eu voto no ‘Cidade de Deus’ e não preciso ir à reunião porque eu tenho certeza que é o filme. Não vou perder tempo discutindo'”, conta o cineasta.
O problema, no fim, foram os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Para Meirelles, o problema foi que o filme não agradou os americanos que selecionavam os indicados da categoria.
“O que eles falavam é que quem votava em filme estrangeiro era só aposentado. Só o público muito velho, que tinha disponibilidade para ir à tarde ao cinema assistir a dois filmes por dia”, fala o diretor.
Como era necessário assistir a um número mínimo de filmes representantes dos outros países, membros mais ativos da Academia não tinham tanto tempo livre para se dedicar à atividade.
“A faixa etária de votantes era de 50, 60 (anos). E o filme não agradou esse público mais velho.”
A esnobada americana não foi bem-recebida ao redor do mundo. Até hoje, a ausência entre os indicados de 2003 aparece em listas de maiores injustiças do Oscar. Para o cineasta, seu filme tinha grandes chances de levar o prêmio.
“O filme tinha ido muito bem em Cannes. Tinha tido uma crítica, no mundo inteiro, muito boa. Acho que o ‘Cidade de Deus’ ganhou 48 prêmios internacionais de melhor filme, então ele tinha um pedigree, assim.”
‘Douglas Silva em cena de Cidade de Deus’, de Fernando Meirelles
Divulgação
A volta dos que não foram
No fim, a esnobada não foi a pior coisa do mundo.
Para ser elegível à maior parte de suas categorias, a Academia exige que uma produção seja exibida por um período nos Estados Unidos no ano anterior à premiação. Uma das poucas exceções é a categoria de filme internacional.
No entanto, um filme indicado na categoria não pode voltar a ser indicado na edição seguinte em outras categorias. Ou seja, se “Cidade de Deus” tivesse entrado para a lista em 2003, não poderia ganhar suas quatro indicações em 2004.
“Acabei me dando muito bem, porque acabei tendo uma indicação pessoal de melhor diretor e isso certamente ajudou a minha carreira”, diz Meirelles.
Para ele, ter membros votantes mais jovens nas outras categorias ajudou. Mas não é possível justificar apenas com isso.
A Miramax, distribuidora internacional do filme e fundada pelos irmãos Bob e Harvey Weinstein, investiu na campanha para que “Cidade de Deus” fosse considerado ao Oscar.
Atualmente cumprindo sentenças de 23 e 16 anos de prisão por diferentes casos de estupro, na época Harvey era considerado um dos homens mais poderosos de Hollywood – e um dos mais influentes nas premiações.
“Por que o ‘Cidade de Deus’ conseguiu aquelas quatro indicações? Porque o Harvey Weinstein investiu. Está em cana hoje. Não estou falando bem dele, não. Eu me senti encontrando com um mafioso quando conheci o cara lá em Los Angeles”, afirma Mantovani.
“Mas ele tinha ligado para o Fernando e dito: ‘Olha, Fernando. Vou te falar uma coisa. As pessoas estão vendo o filme e estão gostando. Eu acho que vai ser indicado para melhor montagem, melhor fotografia e melhor roteiro adaptado. Você não tem chance’. Foi a única coisa que ele errou.”
Cena de ‘Cidade de Deus’
Reprodução
Brasil fora da categoria
“Cidade de Deus” foi a última grande esperança do Brasil para concorrer a melhor filme internacional do Oscar – uma categoria na qual o país não chega desde 1999, com “Central do Brasil”.
Desde então, poucos tiveram o prestígio para, ou sequer a chance de, tentar uma vaga.
Para Meirelles, não é um problema com a produção nacional.
“O Brasil tem escolhido sistematicamente os filmes errados. As pessoas das comissões escolhem os filmes que eles gostam, que eles acham que merece um prêmio, mas não o filme que teria chance no Oscar”, diz o diretor.
Ele propõe que os membros brasileiros da Academia de Hollywood deveriam escolher os representantes do país.
“Quem deveria indicar os filmes para o Oscar deveriam ser os caras da Academia, mas eles (a Academia Brasileira de Cinema) convidam amigos, pessoas que não têm nenhuma ligação com a Academia. Não estou tirando a qualidade de ninguém. Só falta conhecimento para o que serve para a premiação.”
Almeida Prado tem opinião diferente. Para ele, a categoria já sofreu muito nas mãos de membros votantes mais velhos e conservadores, mas tem indicado produções mais ousadas nos últimos anos.
“Acho que (é porque) a gente não fez nenhum filme tão impactante quanto ‘Cidade de Deus'”, diz ele.
“Agora por que isso? Porque, na minha opinião, tem um sistema que a gente criou primeiro com a Ancine, depois com o Fundo Setorial, que basicamente acredita que a gente não deve arriscar. Quando o Fernando Meirelles fez o ‘Cidade de Deus’, ele arriscou o próprio dinheiro dele para fazer algo que provavelmente hoje não seria feito no Fundo Setorial.”
Criado em 2006, o Fundo Setorial do Audiovisual apoia produção, distribuição, exibição e melhoria de infraestrutura. A ações são realizadas por meio de investimentos; financiamentos; redução de encargos financeiros de empréstimos; e valores não-reembolsáveis.
“Acho que a gente criou um sistema de seleção dos filmes que tenta eliminar o risco. Eles querem ter certeza. E isso no cinema não existe. Todos os cinemas do mundo só deram certo quando arriscam.”