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Livro ‘Mordaça’ dá voz às vítimas da censura exercida em página infeliz da história da música do Brasil

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Obra ganha relevo ao enfatizar atuações de nomes geralmente esquecidos como o advogado João Carlos Müller. Resenha de livro
Título: Mordaça – Histórias de música e censura em tempos autoritários
Autoria: João Pimentel e Zé McGill
Edição: Sonora Editora
Cotação: * * * *
♪ A ação insana da censura sobre compositores brasileiros é tema já abordado na bibliografia musical do país, sobretudo em biografias de artistas que militaram ao longo dos anos 1960 e 1970 pela volta da democracia. Há inclusive título fundamental dedicado ao assunto, Eu não sou cachorro, não – Música popular cafona e ditadura militar (2002), livro que, há 20 anos, projetou o historiador Paulo Cesar de Araújo, autor desse compêndio sobre a ação do autoritarismo brasileiro nas obras dos compositores rotulados como bregas.
Livro lançado em dezembro pela Sonora Editora, Mordaça (2021) remexe no assunto e inventaria a ação da censura na música do Brasil a partir da decretação do AI-5 em 1968, dando voz aos artistas que sofreram com essas ações – e também a nomes que ajudaram a livrar os compositores das garras dos censores.
Não por acaso, na disposição dos 29 capítulos no livro, o primeiro a ser ouvido nas páginas de Mordaça pelos jornalistas João Pimentel e Zé McGill, é João Carlos Müller (1940 – 2021), advogado que, ao longo da década (1966 – 1976) em que atuou no departamento jurídico da gravadora Philips, teve como missão dialogar com os censores para tentar liberar músicas vetadas em discos da companhia fonográfica.
O testemunho de Müller resulta essencial para que o leitor saiba como eram os bastidores da censura, por vezes regidos pelas leis informais das relações (mais ou menos cordiais) entre advogados, censores e censurados.
Cada capítulo do livro dá voz a um nome da música do Brasil. Os 29 capítulos se sucedem em Mordaça após o prefácio A escravidão das ideias – em que Sérgio Augusto lembra que a repressão à arte musical acontece no Brasil desde que o samba é samba – e a apresentação em que os autores do livro historiam ações da censura no Estado Novo, regime ditatorial em vigor entre 1937 e 1946 sob o comando do presidente Getúlio Vargas (1882 – 1954).
Depois de João Carlos Müller, o primeiro nome ouvido em Mordaça é o de Chico Buarque, compositor que se tornou símbolo da luta contra a censura por ter sido perseguido pela máquina repressora da ditadura desde que o samba Apesar de você (1970) escapou do crivo dos censores e foi parar na boca do povo até ter a veiculação vetada em ação já inócua.
Apesar da relevância da exposição de depoimentos exclusivos como os de compositores como Chico Buarque, Jards Macalé, João Bosco, Marcos Valle e Ivan Lins, o livro Mordaça alcança maior valor documental quando direciona o foco para personagens (quase) nunca ouvidos. Como Genilson Barbosa, por exemplo.
Encarregado pela gravadora RCA-Victor de tentar resolver com a censura as proibições de músicas dessa companhia fonográfica, Genilson é categórico ao afirmar que havia suborno dos censores – prática negada com a mesma ênfase por João Carlos Müller.
Já a entrevista de Geraldo Azevedo é especialmente relevante por documentar em livro a tortura sofrida pelo artista, parceiro de Geraldo Vandré na Canção da despedida, música que somente seria gravada em 1983, por Elba Ramalho, à revelia de Vandré.
Ao longo da narrativa de Mordaça, aparecem personagens já lendárias como a ranzinza ex-delegada da Polícia Federal Solange Hernandes (1938 – 2013), censora implacável que se tornou chefe do órgão de repressão entre 1981 e 1984. Morta aos 75 anos, Hernandes está imortalizada pela homenagem prestada por Leo Jaime – um dos entrevistados por João Pimentel e Zé McGill – na música Solange (1985), versão em português de So lonely (1978), música do grupo inglês The Police.
Há no livro depoimentos meramente afetivos, como o de Beth Carvalho (1946 – 2019), cantora militante que nunca sofreu a ação direta da censura por não ser compositora, mas que deu voz a sambas politizados e alinhados com a ideologia de esquerda, como Virada (Noca da Portela e Gilmar Alves Pereira, 1981).
Em contrapartida, ao entrevistar BNegão em capítulo alocado ao fim de Mordaça com o caso de proibição de show feito pelo artista em 2019 com a banda Seletores de Frequência, os autores mostram que, mesmo oficialmente extinta em 3 de agosto de 1988, a censura ainda vigora extraoficialmente.
Essa censura oficiosa é legitimada pela ideologia extremista do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, cujo autoritarismo evoca a era sombria da ditadura, como enfatizam vários entrevistados ao longo do livro, cujo posfácio é intitulado justamente Censura nos anos Bolsonaro.
Mordaça encerra com mais uma página infeliz da história do Brasil que, espera-se, seja logo virada definitivamente.

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