Festas e Rodeios

José Miguel Wisnik desenterra na poética do álbum ‘Vão’ a força bruta de um Brasil ainda por brotar

Published

on

As músicas ‘Jequitibá’, ‘Sereia’ e ‘Chorou e riu’ sobressaem na inédita safra autoral de disco fincado na lírica vigorosa do compositor e de parceiros letristas como Arnaldo Antunes e Luiz Tatit. Capa da edição em CD do álbum ‘Vão’, de José Miguel Wisnik
Bob Wolfenson
Resenha de álbum
Título: Vão
Artista: José Miguel Wisnik
Edição: Circus
Cotação: ★ ★ ★ ★
♪ A senha para decifrar Vão, quinto álbum solo autoral de José Miguel Wisnik, reside na letra do samba Chorou e riu, gravado pelo artista paulista com Mônica Salmaso.
Com versos alusivos à letra de Meditação (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça, 1959), standard da bossa nova, Chorou e riu expõe a insensatez de um Brasil aparentemente dominado pela voz dos imbecis já citados por Caetano Veloso em Saudosismo (1968). Findo com o choro da cuíca, símbolo do lamento dos deserdados na pátria nada gentil, o samba perfila um Brasil que despenca no “vão do horror”, mas que tem bossa e uma força bruta ainda por brotar do solo.
Na poética refinada do álbum Vão, arquitetada com versos de parceiros letristas como Arnaldo Antunes, Carlos Rennó e Luiz Tatit, Wisnik desenterra essa força bruta, personificada na faixa de abertura pelo jequitibá plantado no alvorecer da cidade de São Paulo (SP).
Gravada com a adesão vocal de Ná Ozzetti, cantora recorrente na discografia de Wisnik a ponto de ter dividido o álbum Ná e Zé (2015) com o artista, Jequitibá é a canção em parceria com Rennó que, ao lado do samba Chorou e riu, soa sobressalente entre as 11 composições da safra autoral de Vão, disco gravado com produção musical de Alê Siqueira, sob direção artística do próprio Wisnik, e lançado pelo selo Circus em edição digital (em rotação desde 12 de agosto) e nos formatos de CD (já à venda na loja virtual da produtora fonográfica) e de LP (ainda não disponível no mercado).
Compositor, músico, ensaísta e professor de literatura, Wisnik se apresenta também como cantor de tons baixos, opacos, mas eficazes para dar o recado das letras.
O único arroubo de Vão é o da poesia. Tanto que até Mônica Salmaso se afina com o compositor-que-canta no clima ameno do disco, gravado com a voz de Marina Wisnik, filha de Zé, no bolero Iara e nas canções Avesso vão e Roma, das quais Marina é parceira do pai.
Vão oferece pérolas aos poucos ouvintes da música do artista, cuja discografia solo foi iniciada há 30 anos com a edição do álbum intitulado José Miguel Wisnik (1992).
Ainda que o artista sintonize sons fora da própria esfera, como acontece em Estranha religião (José Miguel Wisnik e Guilherme Wisnik), Vão se assenta sobre a habitual atmosfera sonora da música do compositor. Tanto que Estranha religião, faixa formatada com três músicos da BaianaSystem – Japa System (percussão e beat eletrônico), Junix (guitarras) e Seko Bass (baixo elétrico) – e com sample de Reza forte (Russo Passapusso, Seko Bass e BNegão, 2021) – soa quase como rachadura na arquitetura clássica de Vão.
José Miguel Wisnik apresenta parcerias com Arnaldo Antunes, Carlos Rennó, Luiz Tatit e Marina Wisnik no álbum ‘Vão’
Bob Wolfenson / Divulgação
Por mais que a força melódica do repertório se dissipe à medida que avança a audição do álbum, o pulso poético se mantém firme ao longo das 11 faixas. Até porque a letra de Eu disse sim (José Miguel Wisnik e Carlos Rennó), por exemplo, foi escrita a partir de monólogo da personagem Molly Bloom em Ulisses (1922), romance já centenário do escritor irlandês James Joyce (1882 – 1941). Sem falar que Deixe eu ir ostenta a sintaxe magnética de Luiz Tatit, parceiro letrista de Wisnik na composição.
E como ignorar a força da poesia de Sereia? Sereia é música de Wisnik letrada por Arnaldo Antunes com versos sobre o corpo que naufraga com o avanço da doença silenciosa que anuncia a finitude na faixa ancorada nos timbres tensos da guitarra de Marcio Arantes, produtor musical deste fonograma que se eleva em Vão.
Se breve é a vida, longa é a arte, assunto de O chamado e a chama (José Miguel Wisnik e Paulo Neves), cuja letra versa sobre a relação entre a música, a poesia e o músico. A voz da deusa-mulher Elza Soares (1930 – 2022) reverbera – “Me deixe cantar até o fim!” – através do sample do samba A mulher do fim do mundo (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2015) com a sinalizar que a Arte não finda.
Única música pré-existente na safra inteiramente autoral de Vão, o fado Terra estrangeira (1995) fecha o álbum na voz de Celso Sim com imagens de além-mar que reforçam a sensação de que Vão versa sobre um Brasil encalhado, a ser redescoberto com toda a força bruta que ainda há de brotar no solo em que está fincado o ancestral jequitibá paulistano.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Trending

Copyright © 2017 Zox News Theme. Theme by MVP Themes, powered by WordPress.