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‘As pessoas esqueceram como foi difícil reconstruir a democracia’, diz Ricardo Darín sobre ‘Argentina, 1985’ e ataques no Brasil em 2023

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Ator interpreta promotor de julgamento histórico que condenou militares ditadores na Argentina em 1985. Ao lado de diretor, ele fala do filme e comenta ataques de 8 de janeiro no Brasil. Ricardo Darín em ‘Argentina, 1985’
Divulgação
Em “Argentina, 1985”, Ricardo Darín interpreta Julio César Strassera, promotor-chefe do julgamento que condenou os militares que tinham acabado de comandar uma ditadura sanguinária no país. O longa, dirigido por Santiago Mitre, ganhou o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, e concorre ao Oscar.
Darín e Mitre falaram ao g1 sobre as memórias do julgamento real, a reconstrução deste momento histórico no cinema, a importância da memória para defender a democracia e como o filme conversa com ataques atuais nos EUA e no Brasil.
Leia mais: ‘Não investigar ditadura no Brasil faz tortura e morte seguir até hoje’, diz promotor de ‘Argentina, 1985’
“Vivemos no Brasil e na Argentina ditaduras terríveis, e parece que as pessoas esqueceram como foi difícil reconstruir a democracia. Aí elas começam tudo de novo. Por isso é importante a memória sobre o que aconteceu. Para que não sejam cometidos os erros do passado”, diz Darín.
Leia a entrevista abaixo:
g1 – Santiago, você tinha 5 anos de idade quando os fatos do filme aconteceram. Qual é sua relação pessoal com essa história e por que contá-la?
Santiago Mitre – A minha relação pessoal com essa história é a que temos todos os argentinos. Em primeiro lugar, muita admiração pelo julgamento, pela coragem de condenar os ditadores um ano depois do regime ter acabado, com países vizinhos ainda governados por militares. Foi uma conquista fundamental para nossa sociedade.
E, pessoalmente, minha mãe trabalhou no judiciário. Ela teve a oportunidade de conhecer o Strassera (promotor principal do caso) quando ela trabalhava na biblioteca do Palácio da Justiça. Ela me contou muitas vezes sobre o julgamento e sobre o Strassera.
g1 -E Ricardo, você se lembra de onde estava quando o julgamento aconteceu em 1985?
Ricardo Darín – Eu não me lembro de onde estava na semana passada (risos). Vou fazer um esforço. Acho que estava trabalhando muito na TV e no teatro, era muito jovem. Mas eu me lembro do clima no país, dessa sensação que foi aos poucos crescendo na sociedade à medida que iam passando os dias, os meses, e começamos a ter certeza que o julgamento ia acontecer mesmo. E com isso foi crescendo muito o entusiasmo. Essa sensação e tenho muito clara em minha vida.
Muita gente acha que o julgamento era televisionado, e que a gente seguia como se faz hoje com os eventos jornalísticos. Mas se transmitia só um trecho de seis minutos nos jornais, que não tinha nem a voz das testemunhas. E tinham os relatos dos jornais. Se você prestar atenção, as testemunhas ficavam de costas para as câmeras, porque havia uma necessidade de protegê-las. Havia muitas ameaças, a situação era complicada.
g1 -A equipe do Strassera teve só cinco meses para juntar as provas para o julgamento, foi um trabalho gigantesco. E como foi o trabalho de reconstruir e recontar esse julgamento?
Santiago Mitre – São coisas incomparáveis. A equipe dele fez um trabalho heróico em tempo recorde, com convicção e paixão. Foi um feito de relevância mundial. Estamos só ajudando ocm a memória deste feito. Ela é importante para que a gente não cometa os mesmos erros do passado.
Há algumas coisas no filme apenas levemente sugeridas, para não sobrecarregar de drama. Mas muitos dos testemunhos dos sobreviventes foram tão fortes que os membros da promotoria choravam.
Santiago Mitre, diretor de ‘Argentina, 1985’
Divulgação
g1 -Por outro lado, recontar um fato histórico em um filme pode resultar em algo didático, tedioso. Mas vocês mostram esse grupo de jovens promotores que parece uma equipe de heróis, Avengers da justiça.
Santiago Mitre – O roteiro tem um aspecto inteligente, que é toda a primeira hora do filme, em que os obstáculos são mostrados de uma forma que permite sorrir, não tão pesada e dolorosa. Mas a verdade é que tudo foi muito doloroso. O que o roteiro faz é entrar lentamente nessa zona mais escura, com um pouco de leveza para que se possa digerir o drama.
Quando se trabalha com um fato histórico dessa magnitude, é preciso contá-lo com precisão, clareza e respeito, mas também fazer bom cinema, construir boas cenas, trabalhar a tensão, ter bons personagens, que os atores deem o seu melhor, sem que o fato histórico seja desfocado.
O filme nos aproxima da vida como é ela é de verdade. Ele eram quase o oposto de super-heróis. Eles faziam seu trabalho com paixão e convicção. Para mudar profundamente a sociedade, não é preciso ser alguém superlativo, apenas assumir seu trabalho de forma honesta e corajosa.
g1 -Eu falei também com o promotor assistente, Ocampo, e sua figura é muito interessante, pois mostra o aspecto familiar do conflito do julgamento, já que ele foi contra a própria mãe e tios.
Santiago Mitre – O filme mostra uma família principal (do promotor Strassera) que representa a nossa sociedade, que queria o julgamento, mas também o temia. A família de Ocampo representa outra parte da sociedade argentina, que era quem tinha apoiado a ditadura e começou a descobrir os seus horrores junto com o julgamento. Mas também há as famílias das testemunhas que foram destruídas pela ditadura. Queríamos contar essas várias histórias.
Assista ao trailer do filme “Argentina, 1985”
g1 -O filme de vocês é uma defesa da democracia. O que vocês acharam dos ataques contra a democracia que aconteceram aqui no Brasil em janeiro de 2023? Vocês viram as imagens?
Santiago Mitre – Foi horroroso. Quando fizemos o filme, sabíamos que era um momento da sociedade em que todas as sociedades estão divididas, há muito ódio, e parecia que falar sobre justiça como elemento essencial para consolidar uma democracia era muito importante.
Logo estreamos o filmee aconteceram coisas como essas no Brasil. E nos demos conta de que a democracia é ainda mais importante. É um assunto sobre o qual deveríamos nos preocupar e debater. Devemos repudiar o que aconteceu no Brasil enfaticamente
Ricardo Darín – Assim como o que aconteceu nos Estados Unidos. São sinais de que muita gente está olhando para outro lado, como se tivesse perdido a memória. Eles apostam na revolta e na indignação quando sabemos que o caminho é o diálogo.
Vivemos no Brasil e na Argentina ditaduras terríveis, e parece que as pessoas esqueceram como foi difícil reconstruir a democracia. Aí elas começam tudo de novo. Por isso é importante a memória sobre o que aconteceu. Para que não sejam cometidos os erros do passado.
Ricardo Darín e Peter Lanzani em ‘Argentina 1985’
Divulgação/Amazon Studios
g1 -Ricardo, você aqui no Brasil é sinônimo de cinema argentina. Você sente uma responsabilidade de representar seu país? Como se fosse o Messi do cinema?
Ricardo Darín – Não, não, não. Não tenho esse sentimento, e dizer isso me parece injusto. Temos atores, atrizes, diretores e produções muito boas. Não me sinto lisonjeado com isso e nem sinto essa pressão. Tenho plena consciência da quantidade de trabalho e esforço que muitos colegas da Argentina e de toda a América do Sul fazem para realizar seus filmes, muitas vezes com orçamentos baixos e resultados muito bons. Mas isso não significa que não aprecio o amor e a confiança que vocês constantemente me transmitem, um tsunami de afeto que sempre tento agradecer.

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