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Primeiro álbum do grupo Secos & Molhados faz 50 anos sem perder a aura de clássico da música brasileira

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Cinquentenário do disco de 1973 acontece em meio a briga judicial pelo uso do repertório em ainda inédita série documental sobre a banda que uniu Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad. ♪ MEMÓRIA ♫ DISCOS DE 1973 – Gravado entre maio e junho de 1973 no estúdio Prova da cidade de São Paulo (SP), tendo sido lançado pela gravadora Continental em agosto daquele ano repleto de marcantes estreias fonográficas na música brasileira, o primeiro dos dois álbuns de estúdio do grupo Secos & Molhados com a voz de Ney Matogrosso faz 50 anos em 2023 sem perder a aura de clássico e o status de título antológico da discografia brasileira.
Contudo, o cinquentenário do disco Secos & Molhados acontece em meio a brigas. Compositor cujo nome figura nos créditos de 12 das 13 músicas do repertório lapidar do álbum, João Ricardo está em litígio judicial com a produtora de ainda inédita série documental sobre a trajetória fulminante desse grupo que afrontou o sistema repressor do Brasil de 1973 com músicas de alto quilate poético e com a postura cênica libertária do trio, personificado na figura andrógina do vocalista Ney Matogrosso. João Ricardo vetou o uso das músicas na produção.
Briga nenhuma abafa o poder de sedução do disco, antológico a começar pela capa, criação do fotógrafo Antonio Carlos Rodrigues. Na capa, os então quatro integrantes do conjunto – João Ricardo, Ney Matogrosso, Gerson Conrad e Marcelo Frias – têm as cabeças entregues de bandeja, servidas como pratos principais do banquete tropicalista, já com a maquiagem que caracterizaria a imagem visual do grupo. Frias, então no posto de baterista e percussionista, rejeitou a mise-en-scène e decidiu pular fora da formação oficial da banda, perdendo a chance de entrar para a história da música brasileira.
Em cena desde 1971, o Secos & Molhados ganhou a voz e o rosto de Ney Matogrosso por intermédio de Luhli (1945 – 2018), que apresentou o então desconhecido Ney de Souza Pereira a João Ricardo. A voz de Ney fez toda a diferença diante da grandeza do repertório. “Cheguei e encontrei o repertório pronto e já gostei de cara. Percebi logo a qualidade das canções”, atestou Ney em depoimento para edição do álbum em CD fabricado em 2008.
A maioria das 13 canções foi criada a partir de poemas já pré-existentes, geralmente musicados por João Ricardo e eventualmente por Gerson Conrad, parceiro do poeta e compositor carioca Vinicius de Moraes (1913 – 1980) em Rosa de Hiroshima, um dos hits atemporais do repertório que poderia ter totalizado 14 músicas se a censura tivesse liberado Tem gente com fome (João Ricardo e Solano Trindade), composição que somente conseguiu permissão para vir ao mundo em 1979, em disco solo de Ney Matogrosso.
Mas Sangue latino – grande sucesso do álbum ao lado de O vira e da já citada Rosa de Hiroshima – ostenta versos escritos por Paulinho Mendonça para a melodia de João Ricardo. O contorno do baixo de Willie Verdaguer na introdução da música se tornou tão marcante que o instrumentista merecia crédito de coautor da composição.
Autora da letra de O vira, musicada por João Ricardo, Luhli contribuiu decisivamente para o sucesso da faixa ao sugerir que o arranjo embutisse estilizações da música portuguesa na batida de rock’n’roll da gravação. Hit radiofônico na época, O vira seduziu o público infantil, alheio aos toques políticos de O patrão nosso de cada dia – música criada solitariamente por João Ricardo, tal como Assim assado – e de Mulher barriguda, composição surgida de poema de Solano Trindade (1908 – 1974), musicado por Ricardo e gravado em ritmo de boogie.
Já Amor e Primavera nos dentes – música gravada com o toque progressivo em voga no universo pop da época – se originam do fato de João Ricardo ter musicado dois poemas do pai, João Apolinário (1924 – 1988), jornalista português que seria transformado em empresário do grupo, fato que causaria discórdia entre os integrantes por conta da dispensa do empresário anterior, Moracy do Val, que exerceu a função com heroísmo quando ninguém imaginava que aquele grupo desconhecido de 1971 quebraria a indústria da música em 1973, com recordes de vendas de discos e lotações de shows.
João Ricardo também firmou parceria com Gerson Conrad em El rey e virou parceiro do poeta Manuel Bandeira (1886 – 1968) em Rondó do capitão, uma das poucas músicas obscuras do repertório do álbum. As outras são As andorinhas e Prece cósmica, ambos originadas de poemas do ensaísta e nacionalista paulista Cassiano Ricardo (1895 – 1974) musicados por João Ricardo.
Com arranjo de Zé Rodrix (1947 – 2009), a canção Fala – outra parceria de João Ricardo com Luhli, autores de O vira – representa pico de beleza melódica no fecho desse álbum que completa 50 anos sem dar sinais de envelhecimento artístico.
Por mais que o sucesso do grupo esteja associado ao contexto social e político específico de 1973, a alta qualidade do repertório do álbum Secos & Molhados vem transcendendo o tempo pela força imortal da música e do canto de Ney Matogrosso.
Ney é voz impagável de disco que, ainda que também tenha se alimentado da beleza dos arranjos coletivos e das harmonizações das vozes do trio, resiste antológico pela combinação de grandes canções com um cantor da mesma dimensão do repertório.
♪ Leia outros textos da série memorialista do Blog do Mauro Ferreira sobre grandes álbuns brasileiros que fazem 50 anos em 2023:
1. Álbum perturbador que projetou Raul Seixas em 1973, ‘Krig-ga, bandolo!’ ainda é ‘mosca na sopa’ após 50 anos
2. Álbum inicial de Luiz Melodia, ‘Pérola negra’ brilha há 50 anos pela singular pluralidade da obra do ar

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